O SEMENTAL
A merda do velho não me quis emprestar o semental mas bem o tramei.O meu primo Leocádio fez bem a sua parte. Os ucranianos fecharam a boca a troco de alguns euros, bem entendido, que também não dão ponto sem nó, mas o que eles estavam era assustados com a ideia de desagradarem ao meu primo Leocádio, tinha-os empregado no monte, eram dois, a cuidarem das vacas, um monte sem água nem luz, longe da aldeia, mas quem é que queria trabalhar hoje num monte sem água nem luz?, nem os ciganos, passavam dias sem verem vivalma, só as vacas e as azinheiras, era por isso se calhar que apanhavam carraspanas de caixão à cova segundo me disse o meu primo Leocádio, até já os tinha aconselhado a beberem só ao fim de semana e à vez, embebedava-se um, curtia a piela e a seguir embebedava-se o outro, que era para ver se não deixavam o monte e o gado completamente ao desamparo, mas qual quê? apanhavam-nas ao mesmo tempo, também que piada tem um homem beber sozinho? de maneira que segundo me contou o meu primo Leocádio já os tinha ido encontrar caídos de borco, na rua do monte, sem darem acordo de si, e nenhum deles tinha trabalhado no campo, tinham habilitações para outras coisas, um até tinha sido professor lá na sua terra, conforme me contou o meu primo Leocádio, mas aqui foi o que conseguiram arranjar, o meu primo Leocádio dizia que era uma pena que gente com tantas capacidades não fosse melhor aproveitada, que o país necessitava de quadros médios e que não os tinha, que a população não tinha suficientes qualificações escolares e profissionais e que esta gente poderia ser melhor aproveitada, diz ele que lê o jornal todos os dias, gosta de falar difícil e passa por saber de política, também já diziam o mesmo do pai, o meu tio António, e de que é que lhe aproveitou?, no tempo da outra senhora ainda foi malhar com os ossos à prisão por causa das políticas, por sinal quem socorreu os meus primos e a minha tia na altura foi a minha mãe e o meu pai, e agora os que se tinham amanhado no tempo da outra senhora amanhados continuam e o meu tio António nem antes nem depois nunca passou da cepa torta, o meu primo Leocádio é que tem medrado, tem sido mais esperto do que o pai, mas estes desgraçados dos ucranianos é que a tudo se sujeitam a troco de pouco. Pois os ucranianos, depois de bem ensinados, tinham ido falar com os outros que trabalhavam para o velho Piteira, eram três, um deles era romeno, falaram com eles, eu e o meu primo Leocádio untámos-lhes as mãos, que para isso já íamos prevenidos, e naquela mesma noite fomos buscar o semental à pastagem, quer dizer, a gente só o pôs em cima da carrinha, quem o foi buscar foram os ucranianos, os cães já os conheciam e nada iriam contar, se fosse a gente estávamos à rasca com os cães, ainda pensámos em levar uma cadela ressaída mas onde é que a íamos buscar? temos cães e cadelas mas naquela altura nenhuma delas estava ressaída, só se esperássemos que alguma se pusesse, a gente lançava-a aos cães e podíamos fazer o trabalhinho descansados que os cães logo haveriam de desalvorar campo fora atrás da bicha, mas com mais umas coroas os ucranianos não se importaram de apanhar o carneiro, que o bicho era valente e não dava mão a qualquer um, mas lá o apanharam com a promessa de que o devolvíamos daí a dez ou doze dias. E o patrão, o que diziam ao patrão? diziam-lhe que tinham roubado o semental, era o que lhe diziam, que o tinham roubado quando eles foram fazer compras à cidade, que quando foram ainda lá estava o bicho e que quando voltaram já o tinham levado, mas o patrão não ia acreditar, diziam, roubarem o carneiro de dia, com os cães soltos não ia acreditar, que acreditava, que remédio senão acreditar, dizia-lhes eu, que agora isto é uma pouca vergonha, já roubam o gado à luz do dia, que não era a primeira nem seria a última vez que isto acontecia e ele que ficasse bravo uns dias que depois logo amansava quando lhe devolvessem o carneiro, e não é que no outro dia a porra dos ucranianos tinham desaparecido? tinham ido para o Algarve ou para Espanha ou pr'á terra deles, vá lá saber-se, os gajos já a tinham fisgada, quando nos pediram o dinheiro para nos irem buscar o carneiro já a tinham preparada para o outro dia, aquela preocupação com o que o patrão haveria de dizer no outro dia era tudo fita, cagando estavam eles para o patrão, o velho Piteira foi sempre um cão para o pessoal, foi no outro tempo e continua a ser agora, tinha lá os ucranianos ilegais, quando lá chegou e não os viu, com o gado todo tresmalhado e a falta do semental, ia-lhe dando uma coisa, foi queixar-se às autoridades, o velho ainda por cima é parvo, foi queixar-se de que os ucranianos lhe tinham roubado um semental, e como é que sabe que foram ucranianos? perguntaram-lhe, que os tinha lá empregados e que tinham desaparecido com o bicho, assim sem mais nem menos, depois quando lhe pediram os papéis com os contratos de trabalho e com os descontos para a Segurança Social o velho ainda perguntou para que eram os papéis, era para os identificarem ou ele sabia todos aqueles nomes esquisitos de cor? não tinha consigo os papéis, respondeu já atarantado o velho, mas que os ia buscar, claro que não foi buscar nada e nem voltou ao posto, ia buscar lã e veio tosquiado, ia apresentar queixa contra os homens quando os trazia lá ilegais, que parvo o velho me saiu, e a coisa não deu mais para o torto porque quando saiu do posto e contou a história a outros, que apanharam uma barrigada de riso, logo o aconselharam a ir dali falar com um advogado que lhe disse para contar às autoridades que os ucranianos tinham chegado no dia anterior e que por isso ainda não tinha tido tempo de tratar da papelada, e lá se conseguiu escapar à coima. Mas já lá tem outros a trabalhar, e ilegais outra vez, o velho é um safado. Daí a uns dias fomos, de noite, eu e o meu primo, soltar o semental na pastagem, já o tinha lançado às ovelhas, eu já tinha o que queria e o semental a barriga cheia, de maneira que lá o soltámos, o velho Piteira, quando lhe contaram que o carneiro já estava de novo na pastagem nem queria acreditar, e fartou-se de dar tratos à imaginação para descobrir que porra de história era aquela, o velho tem o bicho em grande estimação, teve um primeiro prémio numa exposição de merinos aqui há três anos, e era por isso que eu também queria que ele mo emprestasse mas qual quê? não o empresta a ninguém, mas comigo fodeu-se.
Beberricava encostado ao balcão do bar, perorando para uns quantos que, como ele, bebiam e chasqueavam, de momento, do velho Piteira.
Era a feira, mas já não era uma feira como as de antigamente, com muito pó, muito calor, tendas de pechisbeques, carrocel, carrinhos de choque e circo, mais umas quantas tendas de comes e bebes, com copos de vinho aviados da pipa e pataniscas e uma corredoura anexa, onde se realizavam os negócios do gado. E ciganos, naturalmente, podia-se lá imaginar à época uma feira sem ciganos? Esta não os tinha, nem nuvens de poeira levantadas pelos passantes que a ela se deslocavam em grandes ranchos familiares, tinha as ruas calcetadas, as tendas de comes e bebes eram agora restaurantes de gastronomia regional, os vinhos eram de marca, tudo com um ar finório, meninas de olho pintado vigiavam as muitas exposições e as tendas atabernadas de antanho eram agora bares onde se bebiam uísques, caipirinhas, panachés e outros modernismos. A feira até tinha um programa cultural, enfim, assim lhe chamavam, com a participação daqueles que no momento ocupavam o top-ten nacional e com muitos colóquios e conferências. Não, agora a feira fiava mais fino. E a bem dizer o visitante quase escusava de andar com a moleirinha ao Sol ou à chuva, para tudo havia pavilhões, amplos, airosos e até, imagine-se, alguns deles com ar condicionado. A feira agora era outra loiça. Até lhe tinham deslocado a data. A polémica que isso levantou. Então uma feira que há mais de quinhentos anos se realizava naquela data ia-se lá agora mudá-la? Mas naquela data já ninguém lá ia. Aquela data era a data do fim do ano agrícola, a feira encerrava um ciclo económico, era tão natural a feira como o são as estações do ano. Ceifavam-se as searas, vendiam-se os gados, os lavradores saldavam as suas contas, os trabalhadores recebiam a sua soldada, e naquele intermédio de final de Verão e princípios de Outono se fazia a feira, quando homens e terra enfim descansavam de um ano de labor e suor e ganhavam forças para o reinício da sempiterna luta contra uma Natureza por vezes pródiga mas tantas mais vezes avara e madrasta. Mas isso era quando a vida dos homens se pautava ao ritmo da Natureza.
Os gasómetros e os petromaxes, que prolongavam a vida da feira em cada dia até à meia noite, e upa-upa, e de que só os mais velhos tinham memória, cediam agora lugar à electricidade, electricidade a jorros, luzes multicores, faiscantes, berrantes, intermitentes, e a vida da feira até parecia que ganhava mais animação já a madrugada ia alta. De maneira que ao ritmo da Natureza só mesmo os irracionais, os bravios que não os domesticados que esses, que também tinham direito a pavilhão, onde os orgulhosos donos os expunham na mira gulosa de algum prémio, andavam decerto tresnoitados e de ouvidos azamboados de tanto barulho.
E para esse pavilhão se dirigia agora em animada súcia, já acompanhado pelo primo Leocádio que avistara e chamara em altos brados, modos já destemperados de quem vai de grão-na-asa, o que parecia ser comum ao resto da malta. O júri havia deliberado, no segredo dos deuses, quais os mais nédios e puros exemplares das variadas raças a concurso. Ir-se-ia em breve saber quem haviam sido os premiados, os donos, entenda-se, não as pobres alimárias que ali penavam, durante dias, os quatro penados, sem outro merecimento no final da função senão o de serem propriedade de beltrano ou sicrano que esses, sim , se aboletavam ufanos com o prémio. Pois tinha a concurso um carneiro merino, uma bisarma de bicho que tratara com desvelo e sobre o qual pairava um segredo de que só ele e o primo Leocádio tinham conhecimento. Ou tinham até à conversa anterior, que isto de álcool e discrição nunca deram bom casamento.
O grande momento chegara. O júri, muito circunspecto, com o ar sério das grandes ocasiões, avançava agora para o palanque colocado a meio do pavilhão. Eram três. O que parecia ser o mandante avançou para o microfone. Trazia casaco verde azeitona, de cheviote, gravata em xadrez, de cores vivas e chapéu adornado com pena de faisão, todo ele muito gentleman-farmer. Pigarreou várias vezes até que se fez silêncio. Ouviam-se agora apenas os mugidos das vacas e os balidos das ovelhas. E lá principiou o discurso. Que a feira tinha sido mais uma vez um estrondoso êxito, que o concurso e o empenhamento de muitos tinham tornado possível este grandioso evento cujo nome já tinha ultrapassado fronteiras e elevara bem alto o nome da terra, e lá desfiou uma série interminável de entidades a quem se devia incondicional agradecimento, que a feira se constituía como o mais importante factor de afirmação da região e da sua economia no todo nacional, que a feira tinha sido visitada até ao momento por tais e tais personalidades, e lá veio mais uma chusma delas, que o número de participantes no concurso tinha ultrapassado as previsões mais optimistas, que as raças a concurso eram estas e aquelas e aqueloutras e que os criadores representados eram estes e mais aqueles, e lá desfiou toda aquela série de lugares comuns que são usuais em tais ocasiões. O discurso alongava-se e o silêncio inicial estava definitivamente desfeito. Aos seus constantes pigarros já a multidão não obedecia. Finalmente, finalmente ia anunciar os premiados. E de novo se fez silêncio. A cada anúncio correspondiam manifestações de júbilo que irrompiam aqui e acolá. O primeiro prémio para o carneiro de raça merino coube-lhe a ele. Grande algazarra surdiu do local onde estava com a sua súcia. Sonoras palmadas nas costas, gritaria e uma marcha apressada para a baia onde se encontrava o carneiro coroaram o momento de glória. Pousou-lhe a mão na cabeça, entre os chavelhos e acariciou-o. O bicho era avesso a tais mimos mas conhecia-o demasiado bem para qualquer bote brusco. O mesmo não ocorreu com um penetra que, ensaiando a mesma carícia, acabou por levar tal testada que por pouco não partia o braço, comprimido entre a córnea do animal e as barras da baia.
II
Surdia forte dos lados dos bares e restaurantes a animação. A noite ia alta e fria mas se esquentada a tragos de cerveja e outras pomadas mais espirituosas que importava lá isso? Mais animado era o regabofe no grupo que comemorava o primeiro prémio ao carneiro merino. O velho Piteira olhava-os de longe, cofiando o bigode e bamboleando o corpo, ora para a esquerda ora para a direita. Os amigos de estúrdia e que dessas andanças lhe conheciam as peculiaridades diziam que isso era sinal de estar carregado de álcool até aos gorgomilos. A modos que aquele balancear seria para melhor centrar o campo de visão, já de si enevoado e que ainda por cima lhe parecia fugir para os lados. Finalmente aproximou-se do grupo em passadas hirtas, lançando-se para a frente em lances bruscos que melhor lhe equilibrariam o corpanzil.
-Que merda vem a ser esta? O que é que estão para aqui a comemorar?
A balbúrdia era grande e ninguém lhe prestou atenção. Um houve que lhe agarrou no braço e o puxou para o meio do grupo, sempre era mais um sócio para a função. Com um gesto brusco e violento libertou-se da mão do outro. E tão inesperada e brusca foi a acção que o outro cairia não se amparasse aos companheiros mais próximos. E isto já não passou despercebido. Lentamente o silêncio foi-se estabelecendo no grupo, calando-se uns aos outros por simpatia, se de repente emudeces eu também emudeço porque algo se passará.
-Que merda de comemoração vem a ser esta? - perguntou de novo, a voz entaramelada pela muita morraça já bebida. - Vocês não passam de um bando de ladrões que comemoram uma coisa que era minha e que vocês me roubaram.
-Ó amigo Piteira, que destempero vem a ser esse?- perguntou-lhe, suspeitando já do que tinha acontecido. Ele há amigos.... Tinha falado demais, foi o que foi. Escutam aqui, contam acolá e arranjam apoquentações sem as quais bem se podia passar.
-O que se passa é que o prémio que te deram é meu! Ouviste bem? É meu! Ficaste com um prémio que era meu! - gritava, colérico.
-O prémio quem mo deu foi o júri, ó amigo Piteira, que eu saiba não lhe tirei nada! - respondeu-lhe, tentando manter uma serenidade que sentia ir faltando aos outros.
-Não me queiras endrominar, ó palhaço, há-de nascer o primeiro que me endromine. Ou tu cuidas que eu não sei o que se passou?
-Vai deitá-la! - alguém de entre o grupo gritou, logo apoiado por outras vozes.
-Vai tu deitá-la, cabrão!
-Ó Piteira, olhe que há aqui senhoras. Tento na língua! - gritou-lhe outro.
Tentou pôr água na fervura. Afinal o homem estava bêbedo e com mais três ou quatro bebidas ficava na conta.
-Então o que é que quer beber?
-Não quero beber nada, só quero o que é meu!
-Ele a dar-lhe e a burra a fugir. Vá lá aí uma bebida para o meu amigo Piteira. - pediu ao balcão.
Se lha pusessem na mão haveria de bebê-la, estava naquele ponto em que beberia tudo o que lhe pusessem na frente.
Lá veio a bebida.
-Mas então o que aconteceu? Qual é o seu problema?
-O problema é que o carneiro premiado é filho do meu carneiro premiado aqui há três anos, é filho do meu semental e que eu saiba não to emprestei!
-Mas quem é que lhe foi contar essa?
-Quem me contou não me mentiu. Agora é que eu percebo como é que o carneiro desapareceu e depois me apareceu na pastagem sem mais aquelas!
-E faltava-lhe alguma coisa? Estava maltratado?
-Abusaste, abusaste, roubaste o que não era teu.
-Mas afinal o que é que eu roubei? Já aqui me acusou de dois roubos, o prémio e o carneiro. Começo a achar que são roubos a mais.
-Nem a mais nem a menos. Roubaste-me o carneiro primeiro e o prémio depois. Vá lá aí outra bebida, mas sou eu que pago, não quero nada com vocês! - pediu, a voz cada vez mais pastosa.
-Não foi um roubo, foi uma partida. E bem pregada até, por sinal! - bradou um de entre o grupo.
-Estás com dor de corno! - gritou outro.
-Dor de cornos tem o teu pai! - respondeu-lhe.
_Ó amigo Piteira, tenha lá mais respeito pelos presentes. E para lhe provar que sou melhor do que você, que já aqui me acusou de ladrão em frente de todos estes amigos, vou repartir o prémio consigo. Pronto, aí tem, considero que o prémio é dos dois. Venham lá daí esses ossos.
O Piteira, de olhos arremelgados, pendendo agora para trás e para diante num aparente mais do que real tem-te não caias, que aquilo era odre que suportava muita bebida, renitente, levantou a mão vagarosa e lá apertou e sacudiu a do outro. E logo irrompeu forte gritaria, com muitas palmadas nas costas do Piteira, que só não caía porque as palmadas eram tantas e tão desencontradas que acabavam por equilibrá-lo e com muitas pilhérias à mistura tais como "O Piteira é o maior da Feira", "Piteira é tua a Feira", "Piteira, vai cozer a bebedeira" e outras mais chulas que me dispenso de aqui reproduzir por decoro para com os leitores.
Ia alta a madrugada foram encontrá-lo deitado dentro da baia do carneiro, ressonando que nem um ogre. Indiferente, o carneiro ruminava.
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