O Pacense
domingo, fevereiro 19, 2006
  A morte lenta do mundo rural


O encerramento de muitas escolas, designadas anteriormente por primárias e hoje pela sigla E.B. 1, é uma inevitabilidade. De facto, que sentido faz manter escolas com meia dúzia de alunos? De um ponto de vista económico é absurdo e de um ponto de vista pedagógico, e isto será o mais importante, é erróneo. A economia de escala dita aqui as suas leis.
Basta pensar no que perderão as crianças em termos de socialização e de desfrute de instalações educativas, nomeadamente desportivas, para além de uma maior riqueza e diversidade curricular que só uma escola de dimensões adequadas lhes poderá proporcionar.
E será assim, mal-grado a gritaria de autarcas e populações. Fechar uma escola é apressar a morte de muitas comunidades rurais? Sê-lo-á. Mas qual a alternativa? Sujeitar os infantes a uma escolaridade deficiente? E o não encerramento dessas escolas obstará ao total definhamento de muitas dessas comunidades? Obviamente não.
Também eu, criado em meio rural, como quase todos nós, tenho a nostalgia da minha pequena escola, da minha mestra, dos meus colegas. Esse mundo acabou.
Os assalariados rurais migraram ou emigraram. Os pequenos rendeiros ou proprietários definharam ou simplesmente mudaram de ocupação ou de poiso para viver. Quem quer hoje sujeitar-se a viver num pequeno povoado remoto, e já não digo monte, engordando o seu porquito, mantendo a sua criação, colhendo meia dúzia de sacos de azeitona, semeando uma seara em meia dúzia de hectares e comendo dos legumes plantados no hortejo? Alguns? Decerto. Os poucos idosos que não puderam ou não quiseram mudar-se a horas. A verdade é que nas comunidades rurais mais afastadas dos médios e grandes centros urbanos só há idosos, não há casais jovens e por isso não há crianças. E uma comunidade sem crianças está condenada ao gradual definhamento e ao inexorável desaparecimento. E isto não é apenas entre nós, é um mal comum a toda a Europa.
A velha Europa será, de todos os continentes, aquele onde a mão do homem mais afeiçoou a paisagem, num trabalho continuado por séculos. E países há onde esse trabalho deu aos campos uma aprazibilidade de quase jardim. Do pouco que conheço de modo vivencial sempre recordo com encanto e emoção essa extraordinária obra do engenho humano que é o campo em França. Também a nossa paisagem duriense é disso exemplo paradigmático. Nalguns países, na Áustria por exemplo, a manutenção da paisagem e da agricultura alpina é feita com grandes dispêndios de dinheiros públicos, pois tal agricultura, para subsistir, é altamente custeada.
Será então a manutenção do mundo rural um luxo só acessível a países ricos, que o podem pagar? Talvez não. Talvez seja possível encontrar outra vocação económica para esse mundo que, se o não salvará de todo, talvez o salve em parte. Talvez que o turismo sénior, mormente o proveniente do norte europeu, frio e descolorido, seja em parte solução. E aí sim, aí talvez que algumas actividades agrícolas se lhe possam desenvolver paralelamente e possamos assistir ao retorno de alguns daqueles que aqui votaram com os pés, isto é, que se viram compelidos à partida em procura de melhor vida.
 
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sábado, fevereiro 11, 2006
  Ainda as caricaturas blasfemas


O ministro dos Negócios Estrangeiros do governo português publica um comunicado, com chancela do Ministério, onde condena as caricaturas como ofensivas da religião islâmica. Quanto aos desmandos de multidões histéricas e ululantes que queimam embaixadas e bandeiras e proferem ameaças de morte aos ímpios infiéis ocidentais nem uma palavra. Instado a comentar o comunicado terá dito que não condena o óbvio. Ora é tão óbvio que as caricaturas de Maomé iriam ferir a tão melindrosa susceptibilidade islâmica, como será óbvio que actos de uma violência gratuita e desproporcionada, relativamente à publicação de umas meras caricaturas, são merecedores de um total repúdio e veemente condenação. Mais ainda quando hoje se sabe que tais genuínas e espontâneas manifestações de ira têm vindo a ser preparadas quase desde a publicação das caricaturas, que o foram em Setembro passado.
O que nos vale é que a visibilidade externa das palavras do senhor ministro Freitas do Amaral é tanta quanta a do País e do Governo de que faz parte. Porque as palavras contidas no comunicado do ministério não veiculam apenas a opinião do senhor ministro ou do seu governo, elas são a expressão daquilo que o País pensa sobre o assunto, já que vivemos numa democracia representativa. Mas já estamos habituados a estas tomadas de posição de cócoras dos nossos governantes. Tem sido assim em relação aos governantes das ex-colónias, é assim agora relativamente aos senhores do petróleo. Em nome da realpolitik, isto é, do mundo dos negócios, e para nossa vergonha.
Somos fiéis seguidores de uma política de auto-culpabilização que tem vindo a ensombrar a Europa de há décadas para cá. Os ex-colonizados clamam? Que fazer? Pede-se desculpa. Pede-se desculpa pela História, pelo passado, isto é, pedimos desculpa pela nossa existência de nações com História e passado, pedimos desculpa por termos existido e, não tarda, por existirmos. Por existirmos com as nossas convicções, com a nossa cultura, por existirmos como muito bem entendemos. Cá por mim perguntaria às oligarquias teocráticas e despóticas que governam a maior parte dos países islâmicos, quando é que pensam pedir desculpa pelo desrespeito permanente pelos mais elementares direitos e pelas inúmeras atrocidades cometidas sobre os seus próprios povos. E não por actos passados mas por actos bem presentes.
Entre nós, europeus, e o mundo islâmico hodierno existe uma fractura histórica que remontará ao Século das Luzes. Tivemos guerras religiosas, tivemos os iconoclastas, tivemos a Inquisição, cometemos crimes sem conta em nome da pureza dos ideais religiosos. Se cedemos agora às pressões e exigências de líderes religiosos fanatizados estaremos a pôr em causa todo um legado civilizacional que construímos e a que custo. Eu por mim não quero um regresso à barbárie. Não somos nós que temos que descer ao nível de aceitação de exigências que ponham em causa o modo de vida que escolhemos, são os outros que terão que nos aceitar como somos e como tal terão que nos respeitar. Porque o que todo este mal estar reinante no mundo islâmico reflecte é a sua desadequação a um mundo cada vez mais global, é o choque entre adquiridos civilizacionais cada vez mais globais e um mundo fechado, regido por princípios emanados de textos escritos há 1400 anos e governado por cliques as mais das vezes corruptas e despóticas.
Mas quem quer ser respeitado tem que se dar ao respeito. Por isso foi tão infeliz o comunicado do senhor ministro Freitas do Amaral. E se ainda não tínhamos sido directamente visados pelo fanatismo islâmico que por aí agora tem campeado pois, senhor ministro, para ter dito o que disse mais valia não ter dito nada.

 
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domingo, fevereiro 05, 2006
  Blasfémias

Alguém escreve um livro sobre Maomé. Porque o autor não encontra ninguém que lhe ilustre o livro, com medo de represálias, um obscuro jornal dinamarquês, que dá pelo título de Jillands-Posten, resolve desafiar os criativos locais e, no dia 30 de Setembro, publica doze caricaturas do profeta islâmico. Estava aceso o rastilho.
Curiosamente, só agora, passados cerca de quatro meses, o assunto é alvo da cólera dos governos e dos governados dos países muçulmanos. Porquê só agora? Não o sei. Quem o saiba que mo explique.
Clamam os líderes religiosos muçulmanos que se trata de blasfémia. Não é. Só o crente é blasfemo. O não crente, quando muito, poderá injuriar, denegrir, ofender mas nunca blasfemar.
Será então ofensiva a publicação de tais caricaturas? É-o aos olhos do crente e será de todos conhecida a grande susceptibilidade do crente muçulmano. Esse é um mundo que não conheceu qualquer processo de laicização, onde poder político e poder religioso se confundem onde, enfim, estará de todo por fazer a secularização da lei. Não nos confundamos: aqui, na Europa, o Iluminismo sucedeu no século XVIII e as revoluções liberais, suas filhas, aconteceram há duzentos anos. E no entanto, mesmo aqui, entre nós, não haveria um sentimento de repúdio se acaso, na imprensa muçulmana, surgissem quaisquer caricaturas afrontosas de Cristo ou de qualquer outro símbolo que reputamos como sagrado? Decerto que sim.
Mas o que está aqui verdadeiramente em causa é algo que para nós será um dado adquirido e inquestionável, mas não o é para o mundo muçulmano: a liberdade de expressão, a qual envolve mesmo a liberdade de asnear e ser insensato. Quem quiser poderá fazê-lo, sujeitando-se, é óbvio, ao primado da lei, mas uma lei secular, não religiosa.
Recordar-se-ão decerto do episódio protagonizado por um secretário de Estado de um governo de Cavaco Silva e o escritor José Saramago, acerca da proposição do seu livro O Evangelho Segundo Jesus Cristo para um prémio internacional. Foi de tal monta o incidente que o escritor se exilou em Lanzarote e só muitos anos depois fez as pazes com o partido a que pertence o douto e melindroso secretário de Estado, o P.S.D.. E alguns outros exemplos de susceptibilidades feridas por motivos religiosos aqui se poderiam citar e em época recente. Não estranhemos pois a cólera dos muçulmanos.
Mas se lhes reconhecemos o direito à indignação não abdiquemos jamais das nossas liberdades, tão laboriosa e duramente conquistadas, em nome de qualquer relativismo moral ou da dogmática do politicamente correcto.
Foi destituída de bom senso a publicação de tais caricaturas? Foi. São de evitar quaisquer ofensas gratuitas aos sentimentos religiosos de terceiros? Com certeza. São tais actos inevitáveis? Decerto que não. Pois que protestem os crentes muçulmanos mas que esses protestos não assumam as formas violentas que tão caras são a um sector radicalizado e fanatizado do mundo islâmico. A recente destruição das embaixadas da Dinamarca e Noruega em Damasco não são formas aceitáveis de protesto. A propósito, gostaria de ver a mesma veemência nos protesto de rua quando o que está em causa é um qualquer atentado perpetrado na Europa por um qualquer grupo terrorista de inspiração islâmica.
Na verdade, pessoalmente, que sou agnóstico, e esta afirmação não a poderia eu fazer publicamente se fosse indígena de um qualquer país muçulmano, o incidente provocado pela publicação de tais caricaturas não passa de um fait-divers, pouco merecedor do empolamento que lhe tem sido dado. 
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