O Pacense
domingo, setembro 25, 2005
  Lixo e Consumismo

Costumo fazer curtas viagens em redor do perímetro da cidade. Diviso-a, ao longe, observo como o seu perfil se vai alterando e alongando, mercê do crescimento urbano e, mais do que isso, procuro o contacto com o campo e com alguns dos seus recantos pitorescos e bucólicos, que ainda os há.
Muitas vezes incluo nesses pequenos roteiros uma ida à Fonte Mouro. E por ali me quedo um pouco, a fumar um cigarro à sombra dos pinheiros que bordejam o caminho vicinal, e que julgo centenários, tal o seu porte. E dou por mim a recordar tempos, que nem sequer vivi, quando para ali, em passeio pedestre, no dizer de amigos mais idosos, o bejense ia piquenicar em fins-de-semana mais soalheiros, que o lugar é acolhedor e com água e sombra fartas. Se em Lisboa se ia aos Domingos para as hortas merendar e bater o fado, também aqui o provinciano cumpria esse ritual de frequentar, em patuscadas alegres e ruidosas, as agora quase inexistentes hortas que rodeavam a cidade. E se não cantava o fado cantava as suas modas, porque nisto do cantar pedimos, ou pedíamos, meças a quem quer que seja.
Há anos atrás a Junta de Freguesia local teve a boa ideia, de que não anda ausente algum salutar saudosismo, de dotar o sítio com uns bancos e umas mesas, em cimento, à semelhança dos que se encontram no Parque de Merendas. Dar-se-ia assim mais conforto ao eventual grupo que decidisse reatar hábitos antigos e talvez fosse isso incentivo para que outros lhe seguissem o exemplo.
Que o local é frequentado atesta-o o numeroso lixo que conspurca o local e o barranco que lhe corre à margem. Ele são garrafas, garrafões, sacos e papelões e toda a casta de porcarias próprias daquilo a que se chama uma sociedade de consumo e desperdício. De quando em vez o local aparece limpo, decerto que por zelo da Junta, mas não tarda e logo o lixo se começa de novo a acumular. E eis como o bucolismo e pitoresco de um lugar aprazível, com as suas sombras, silvados e loureiros, com sua fonte e regato de águas cantantes, são maculados pela incúria e desmazelo de alguns.
E o mesmo se poderia dizer de outros locais para onde se concorre em patuscadas, ou se pára ocasionalmente com o fito de merendar. Viajei há algum tempo de Expresso, entre Lisboa e Beja, pelo IP1, e fui observando a berma da estrada. Dada a posição elevada, em relação ao piso da estrada, de quem viaja neste transporte, podia fazê-lo perfeitamente. A berma era um permanente corredor de lixo ao longo de todo o percurso, pois todo o objecto é bom para lançar janela fora. E nos locais com acesso, onde alguma sombra amiga bordejava a estrada, aí ainda era maior a lixeira, sinal óbvio de que o local era frequentado.
Creio que um dos mais seguros métodos para se aquilatar do grau de civilidade de uma população é o verificar-se a forma como esta trata o ambiente. Apesar de se verificar em sectores da população, e já não tão minoritários quanto isso, a emergência de uma verdadeira consciência ambiental, é-nos evidente que deste ponto de vista muito teremos ainda que progredir.
Tão ou mais importante do que andarmos a exigir aos poderes instituídos que zelem pela limpeza e higiene do meio-ambiente é nós próprios termos o cuidado de não o conspurcar. E isso passa quase sempre pela adopção de pequenos gestos, pequenos hábitos, aqueles gestos e hábitos que, como se diz, afinal até nem custam nada. 
|
terça-feira, setembro 20, 2005
  A "Doutorite"

Enferma o País de vários males, de índole cultural e social, de tal forma enraizados que, como um sarro imune a sucessivas lavagens, persistem em permanecer como um traço de carácter que nos afasta irremediavelmente daquela modernidade por que almejamos.
Entre essas taras avulta a da "doutorite". Creio não haver país algum no mundo, pelo menos naquele mundo a que queremos pertencer, onde exista uma tão grande densidade de "doutores" por quilómetro quadrado. Ele é "doutor" para aqui, "doutor para ali", os doutores tudo enxameiam. De título académico converteu-se em factor de promoção e estatuto social. Ele não há bicho-careto algum que, investido em funções de carácter político ou empresarial, por pouco relevantes que sejam, não passe a ostentar, de imediato e publicamente, o título de doutor. Mesmo que o não seja.
O "doutor" de hoje corresponderá, de forma agravada, ao barão dos tempos da monarquia liberal. Barão que era objecto de sátira de cronistas, jornalistas, poetas e outros que com mais acutilância observam a sociedade e as suas taras. João de Deus, a propósito da "baronite", compôs o célebre epigrama em que dizia:
"Foge, cão, que te fazem barão!
Para onde, se me fazem visconde?"
Experimente o leitor, em local onde não seja conhecido, apresentar-se de fato e gravata e dando-se ares, e muito possivelmente o empregado de balcão, o empregado de mesa, trata-lo-á por "doutor".
Não deixa de ser curiosa esta "doutorite aguda" num país que, ainda na década de sessenta, apresentava uma taxa de analfabetismo que rondava os 40% e, ainda hoje, continua a liderar o "ranking" dos países europeus, com uma taxa que medeia entre os 8 e 10%.
Há nesta postura o seu quê de novo-riquismo, de ostentação ridícula e pacóvia de quem nunca nada teve e de repente se vê senhor de algo que o deslumbra e que ele entende exibir despudoradamente, para que também o mundo se possa deslumbrar com ele.
Em boa verdade existem na carreira académica vários degraus dos quais o último é, precisamente, o de "doutor": bacharel, licenciado, mestre e doutor. E aqui é que bate o ponto: Portugal é, na Europa a que queremos pertencer, e não só de um ponto de vista geográfico, o país com menos doutorados relativamente à população estudantil.
Esta distorção resultará do facto de termos assistido, num escasso número de anos, a um aumento muito significativo da população estudantil ao nível do ensino superior, o que é de saudar. Os doutoramentos surgirão a seu tempo.
Alguém que visitasse o País e não fosse conhecedor da língua nem conhecesse o exacto significado da palavra "doutor", julgaria tal palavra como integrante da onomástica nacional e que o país teria mais ou menos ensandecido, tanta era a gente que tinha por nome "doutor". A seu tempo, esperemo-lo, a "doutorite aguda" ir-se-á esbater e ceder o seu lugar a uma atitude mais natural e cordata de maneira a que passemos a ser Zés e Manéis e outros que tais, que esses sim, são nomes de baptismo. 
|
terça-feira, setembro 13, 2005
  Os Moinhos do Guadiana

Procuremos a definição de monumento num dicionário. Que nos diz ele?
Monumento: construção ou obra de escultura destinada a perpetuar a memória de um facto ou de alguma personagem notável; edifício majestoso; obra digna de passar à posteridade; memória; recordação; restos ou fragmentos materiais pelos quais podemos conhecer a história dos tempos passados. Será então isto, grosso modo, aquilo que comummente é entendido por monumento. Embora, quando o pensemos, o arquétipo que nos ocorra seja sempre o do edifício majestoso, a construção grandiosa e perene, enaltecedora dos valores religiosos ou militares, glorificadora dos feitos pátrios. Enfim, a mania das grandezas que a todos um pouco contamina.
Vem isto a propósito dos humildes, esquecidos e derruídos moinhos do Guadiana. Serão eles um monumento? São-no, sem dúvida. Faltar-lhes-á a grandiosidade, mas são memória, são recordação, são fragmento material pelo qual podemos conhecer a história dos tempos passados, são monumentos erguidos ao engenho e ao trabalho dos nossos antepassados, e que maior majestade poderá existir do que aquela que glorifica e louva o engenho e o trabalho humanos? Não exaltam a guerra nem o ódio, não exaltam valores religiosos quantas vezes fonte de intolerância e violência, exaltam a paz, o trabalho, a mais nobre das actividades humanas.
Poder-se-á compreender esta região e o seu povo, as suas idiossincrasias sociais e culturais sem o contexto económico marcado essencialmente pela cultura extensiva dos cereais, particularmente do trigo? Obviamente que não. E aí temos o moinho do Guadiana, justamente como parte dessa cadeia de actividades relacionadas com a produção do trigo e sua transformação. E foi tão importante este ciclo de actividades, que poderemos designar por ciclo do pão, que tudo ele impregnou: o folclore, o vestuário, a gastronomia, os anexins populares, a calendarização das feiras e também a sazonalidade laboral, a fome e a pobreza.
E os moinhos foram peça importante desse mundo. Centenários, de muitos séculos, coevos de mouros, moeram o trigo de que se alimentaram as gerações que nos precederam. Construídos naquela sua forma abaulada, de grossas paredes, são um milagre de engenho capaz de resistir anos sem fim às fúrias devastadoras das cheias invernosas.
Para outros, muitos outros, são memória, não muito antiga, de pescarias e caldos de peixe comidos à sua sombra amiga.
Ao que vem tudo isto, perguntarão? Vem a propósito de que urge reabilitar, preservar, pôr em funcionamento um desses moinhos. Não tenhamos a veleidade de salvá-los todos que é a melhor forma de não salvar nenhum. Naquela parte do concelho de Beja cuja fronteira é o Guadiana alguns existem, nas freguesias de Baleizão e Quintos. Que se conjuguem esforços das várias entidades para isso vocacionadas e se proceda ao restauro de um desses moinhos. É ainda hoje possível encontrar vivo algum desses moleiros que nos transmita os seus saberes e torne possível o seu funcionamento. Mas essa possibilidade esvai-se com o tempo, todo esse saber desaparecerá com a morte do último moleiro.
É de interesse histórico e pedagógico fazê-lo. Para aqueles mais pragmáticos, para quem o interesse económico é dominante, lembro que será sempre um ponto de notável interesse a visitar pelo turista acidental a quem se proponha um passeio segundo uma rota a que se poderia chamar Rota do Pão. Não deixemos pois perder um tão notável exemplo de engenho industrial. 
|
domingo, setembro 04, 2005
  Nova Orleães Deserdada

Das profusas imagens que nos têm chegado do calamitoso estado da cidade de Nova Orleães, após a passagem do furacão Katrina, um aspecto desde logo se me evidenciou como estranho e cuja explicação os media tardaram a dar: as multidões que ficaram na cidade e que agora careciam de urgente auxílio eram, maioritariamente, constituídas por negros. Porquê? Perguntava-me, suspeitando a resposta.
E a resposta é que o "Deep South" ainda não saldou de todo a sua dívida para com as populações negras que foram, enquanto mão-de-obra escrava, o sustentáculo da sua prosperidade e que ainda hoje ocupam as franjas mais desfavorecidas e marginais de uma sociedade rica, opulenta e profundamente injusta.
Sim, os pobres são ignorados, como se fossem não-pessoas, como algo incómodo com quem, esporadicamente, o americano médio se cruza nas ruas, são os "loosers" de uma sociedade presa nos meandros do seu egoísmo e veneradora de valores dicotómicos, que se habituou a incensar os seus ricos, exemplo máximo do "winner", modelo social que muitos, esforçadamente, procuram imitar com aplicação, zelo e, suponho, ausência de espírito crítico.
10% será a percentagem de pobres no total da população americana, que sobe para os 30% na cidade de Nova Orleães, que por sua vez apresenta um dos mais baixos produtos per capita entre as grandes cidades da União. E toda aquela gente desesperada, que nos foi dado ver, eram parte substancial desses pobres que ficaram por não terem meios para partir, nem porventura teriam onde ficar na própria cidade, integrantes que seriam, muitos deles, desse numeroso exército maltrapilho dos sem-abrigo que deambula pelas grandes cidades americanas.
Imagens de incúria social, imprevidência e desmazelo na prestação de primeiros socorros que chocam com essa outra imagem de uma nação rica e orgulhosa. Decerto que a poderosa máquina económica e administrativa americana depressa sarará as feridas deixadas pelos furores da Natureza implacável. Mas as imagens iniciais que nos ficaram na memória são aquelas que nos habituámos a associar a um Terceiro-Mundo desorganizado e carente.
E a cidade? Será ela capaz de renascer com a sua alegria, com a sua música, com a sua deslumbrante cultura crioula? Bom seria. Cidade ícone, mãe dessa expressão musical síntese das culturas africana, americana e francesa, e finalmente crioula, berço dessa figura maior do mundo da música, sem distinções, que foi Louis Armstrong, cujo aeroporto internacional leva o seu nome, símbolo feliz e maior do "melting-pot" americano, será sempre referência quase mítica para todos aqueles que gostam de Jazz ou, se não, apreciam a "joie-de-vivre" que ali ficou plantada por influência gaulesa e que, orgulhosamente, a cidade exibe e contrasta com uma outra América, puritana e quantas vezes hipócrita.
P.S. - Não conheço Nova Orleães, como não conheço tantos outros locais espalhados por esse Mundo e que, não obstante, admiro e prezo como se fossem meus também. 
|

Artigos Recentes
Arquivos
Links


Powered by Blogger

Weblog Commenting and Trackback by HaloScan.com