O Pacense
domingo, novembro 27, 2005
  Admirável Mundo Novo

Não deixa de ser tocante a imensa preocupação manifestada agora pelas forças do capitalismo internacional com a sorte dos milhões de deserdados do Terceiro Mundo que elas querem, à viva força, arrancar dos braços da extrema miséria em que têm vivido, isto após séculos de complacência e do mais profundo desinteresse pelo destino das mesmas.
Bem, não será tanto assim. Ainda no final do século XIX o grande poeta britânico Rudyard Kipling alertava para a necessidade de as hostes iluminadas do ocidente civilizarem e trazerem à luz do progresso essas hordas de selvagens, preocupação essa que o mesmo bardo sintetizava na fórmula "O Fardo do Homem Branco", título de um seu poema que a tão magno assunto era dedicado. Claro que atrás dessa proclamada missão civilizadora vinha a desenfreada procura de matérias-primas e de novos mercados para a pujante e triunfante indústria europeia e americana. E todos sabemos no que vieram a dar essa missão civilizadora e os colonialismos consequentes.
Mas como arrancar agora da miséria essas modernas hordas de deserdados? Muito simplesmente pondo-os a trabalhar nas indústrias que para lá vão, apressadamente, sendo deslocalizadas deixando, é certo, nos países de origem, uma horda de novos deserdados, isto é, de desempregados. Provavelmente este será o novo fardo do homem branco.
Mas será que multidões de operários sujeitas às mais hediondas condições de exploração impostas por um capitalismo selvagem, como ocorre na comunista China, com salários miseráveis, sem quaisquer direitos ou garantias, para quem as palavras férias ou direitos sindicais não passam de uma miragem, será que essas multidões foram arrancadas de facto aos braços da miséria? Porque não exportar para esses países, juntamente com as unidades fabris, conceitos tão básicos como os de sindicato, direito à greve, contratação colectiva, justa remuneração, férias, horário laboral, seguro por acidente, assistência na doença, proibição do trabalho infantil e outros que tais?
Ao mesmo tempo, e com total impudor, põe-se em causa, anunciando-lhe um já irremediável fim, o estado-providência. Para muitos nem já se questiona a sua reforma, a sua adaptação, enfim, a novas realidades. Uma construção civilizacional, e das maiores, de que a Europa, mais do que a América, se devia legitimamente orgulhar, tem a morte anunciada pois não é compatível com a concorrência e a competitividade impostas pelas novas condições económicas a nível global. Então como explicar por que motivo as economias nórdicas, onde o mesmo estado-providência foi mais aprofundado e que nele continuam a apostar, se continuem a prefigurar como das economias mais eficazes e competitivas do Mundo?
Serão estas questões denunciadoras de novos confrontos sociais num futuro que cada vez mais se avizinha? Não tenho dúvidas. A França, que conta com uma opinião pública bem melhor informada e formada do que a nossa, já saiu à rua em defesa daquilo que alguns apelidam de privilégios e outros, mais comedidos, de direitos, mas que para a maioria são conquistas civilizacionais e como tal inegociáveis.
E nós por cá? Bem, nós por cá continuamos entretidos com os shows televisivos, as telenovelas e o futebol. Por enquanto... 
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sábado, novembro 12, 2005
  Cuidado! A França é o Laboratório Social e Político da Europa

São inquietantes as imagens e as notícias que nos chegam de França: pelo que traduzem de esboroamento das relações sociais e pela incapacidade de um Estado de Direito fazer valer e respeitar no seu território o primado da lei e da ordem.
Estaremos perante um fenómeno a que chamaremos de luta de classes, utilizando os parâmetros mentais e de análise herdados do velho marxismo? Mas quem pratica os actos de violência não são uma classe social em particular, são jovens, alguns ainda adolescentes. Não estão aqui em causa relações laborais, salariais, de condições de trabalho ou habitabilidade.
São estes jovens gente desesperançada, sem perspectivas de futuro? Também o são os adolescentes que, numerosos, juntamente com os mais velhos, praticam actos de violência gratuita?
Vivem em guetos? Mas estes bairros suburbanos, quando foram construídos há vinte, trinta anos, a expensas do Estado francês, que o mesmo é dizer do contribuinte francês, para realojamento dos pais destes jovens que usufruíam de condições de habitação, essas sim, deploráveis, não foram, logo de início, guetos, como se de um pecado original se tratasse; transformaram-se ou melhor, foram transformados em guetos por aqueles que os habitaram.
Qual o percurso de vida de muitos destes jovens? Sem pretensões de adivinho, porque nunca vi feita essa averiguação, mas tendo em atenção a realidade com que me deparo na minha actividade de professor, realidade essa que não é assim tão diferente da francesa, saberei que esse percurso estará marcado pelo insucesso e abandono escolar, adopção de comportamentos anti-sociais na escola e na sociedade, desestruturação familiar, adopção da violência como forma de afirmação individual e grupal. Em suma, a mais completa ausência dos valores de civilidade e de relacionamento humano nos quais sucessivas gerações de europeus foram educados e que nos permitiram usufruir, até hoje, de formas de viver ditas civilizadas.
Não posso de boamente aceitar as explicações cúmplices e desculpabilizadoras de uma certa sociologia, que assaca toda e qualquer responsabilidade à sociedade em que esses indivíduos se inserem passando em branco as responsabilidades individuais que a cada um incumbe pelos actos que pratica.
É a incompetência e a demissão educativa das famílias, quando existem, é a impunidade do delinquente, que leva a que as escolas fiquem reféns de meia dúzia de desordeiros, é o relativismo moral, é todo um caldo de cultura pautado pelo hedonismo e pela satisfação imediata de toda e qualquer pretensão consumista, caldo de cultura veiculado pelos media e muito particularmente pela televisão, essa grande educadora, é, enfim, a falência total de uma sociedade em transmitir aos mais jovens esses valores elementares que são os do trabalho, da perseverança, das boas maneiras e do respeito tolerante pelo outro, são estas as responsabilidades sociais, não aquelas que uma certa sociologia de pacotilha nos tenta vender.
A desculpabilização e a cumplicidade com a desordem não são o caminho, como não o será a repressão pura e dura. Chegámos a um ponto em que as soluções são sempre difíceis e morosas. Mas que a pauta de valores que tem norteado as sociedades europeias, e cuja génese principiou há três ou quatro dezenas de anos, terá que ser repensada, disso não tenho eu a menor dúvida. Sob pena de, para não caminharmos para uma nova barbárie medieval, caminharmos para formas de sociedade repressivas e anuladoras de muitas das liberdades que prezamos e queremos manter. 
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terça-feira, novembro 01, 2005
  Algumas Divagações a Propósito do Terramoto de Lisboa de 1755

Passam hoje 250 anos sobre o terramoto que destruiu Lisboa. A propósito, várias iniciativas comemorativas do trágico acontecimento se anunciam. Pela manhã os sinos das igrejas de Lisboa dobraram durante longos minutos. Na estação televisiva oficial ouvi eu, à hora do almoço, a locutora de serviço dizer que na capital os sinos haviam repicado. Ora os sinos repicam em altura festivas, dobram quando o momento é de luto e tristeza e tocam a rebate quando anunciam perigo iminente ou convocam as populações por qualquer razão urgente. Ao que parece estas simples distinções semânticas não as sabem fazer os senhores jornalistas de serviço na estação televisiva oficial, quando trocam o repicar do sino, aqui de todo desadequado, pelo dobrar do mesmo, esse sim, o termo ajustado. Adiante.
Tão trágico acontecimento causou, à época, justa e natural comoção por toda a Europa e provocou mesmo acesas discussões sobre o sentido de tais catástrofes: se eram tributáveis a causas apenas naturais ou se resultavam de um qualquer desígnio divino. Se de origem natural como se poderia entender que Deus as permitisse? Se resultantes da sua vontade como entender que a misericórdia divina pudesse lançar sobre os homens tais calamidades? Decerto que para os castigar pela sua impiedade e actos pecaminosos.
Se para o poder temporal, personificado então pelo Marquês de Pombal, tudo se explicava por causas naturais, conforme estudo por este encomendado, o mesmo não acontecia quanto a muitos membros da Igreja, havendo mesmo pregadores inflamados que, no meio das ruínas, compeliam os aterrorizados sobreviventes à aceitação do trágico evento como castigo pelos seus muitos pecados e os incitavam ao arrependimento, opondo-se mesmo alguns deles à reconstrução da cidade porque contrária aos desígnios divinos. Tragicamente célebre ficou o Padre Gabriel Malagrida, jesuíta italiano autor do folheto Juízo da Verdadeira Causa do Terramoto que Padeceu a Corte de Lisboa no 1º de Novembro de 1755, no qual considerava o sismo como castigo de Deus. Acabou condenado e executado a mando do Marquês que, além de déspota e cruel, tinha um particular acinte contra os jesuítas.
A propósito do maremoto que assolou o sudeste asiático, em finais do ano passado, também os jornais se fizeram eco desta polémica, causa natural versus desígnio divino, obviamente mais em estilo de celebração do que com propósitos de relançamento do debate, que hoje teria um cariz anacrónico.
"A Deus o que é de Deus e a César o que é de César", eis a máxima tributável a Jesus quando perguntado pelos fariseus sobre se concordava ou não com o pagamento de tributos ao ocupante romano, já lá vão dois milénios. Mas a linha que separa o temporal do espiritual, o divino do secular, é frágil e, ontem como hoje, passível de atropelos por vezes os mais sinistros. Não é verdade que o terrorismo de raiz muçulmana se arroga a inspiração e protecção divinas como justificação e caução para os seus hediondos actos? Afinal, terá o debate um carácter assim tão anacrónico? 
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