O Pacense
sexta-feira, abril 29, 2005
  UM LAR POR EMPRÉSTIMO

Veio à porta, com a mão espalmada sobre os olhos semicerrados, encandeado pela luminosidade excessiva que se derramava de um céu azul pálido, desmaiado, como se o calor, que tanto era, o tivesse chamuscado. Era uma tarde de Agosto.
Vivia agora num permanente sobressalto. Os montes eram assaltados por quadrilhas de larápios vindos não se sabe de onde e que logo desapareciam, levados pelas artes do diabo. Por toda a freguesia não se falava de outra coisa. Poucos dias havia que na freguesia vizinha tinham roubado um casal seu conhecido e até, ao que se dizia, tinham abusado da velhota. O receio difuso, alimentado quase diariamente pelas conversas ouvidas no Café, centro do mundo duas léguas em redor, tinha-se agora transformado em medo. Os gatunos tinham até então feito as suas patifarias longe, e o seu receio seria como o da caça que ouve lá longe, vagamente, o espingardear dos caçadores e que precatada dorme, com um olho aberto e a orelha fita, sentindo-se ainda segura no aconchego do pasto dissimulador ou na lura aberta em pé de azinheira carcomida pelos anos. Mas agora tinham-se chegado demasiado perto. Sentia-se jogador de uma lotaria para a qual não tinha comprado cautela. Agora também a ele lhe poderia calhar a sorte. O medo havia-se apegado às pessoas como o calor do Verão.
Tranquilizou-se. Era o jipe da Guarda.
A mulher veio à soleira perguntando quem era, que era a Guarda, que descansasse. Também ela, e ainda mais ela, vivia em sobressalto. Nem as poucas horas que dantes dormia, que os anos nos vão tirando as horas de sono, agora lhe aproveitavam. Até o ruído mais familiar a acordava e a punha em cuidados por longo tempo, sem pregar olho.
-Bons dias! Bons dias! Que não abrissem a porta a desconhecidos, fosse lá por que razão fosse, já que não tinham telefone que comprassem um telemóvel, que era coisa útil e que até já nem custava muito dinheiro, que até os filhos lho poderiam comprar, que estavam empregados e que se o senhor Aníbal dissesse para o que era decerto que não iriam dizer que não. E por que toma e por que deixa...
Mas o semblante taciturno, sombrio, dos guardas não tranquilizava ninguém. Atenazada pelos superiores, apoucada pelo povo, pois aquilo durava havia meses sem que lhe conseguisse pôr termo, a autoridade sentia-se incomodada e posta em causa.
E lá seguiram o seu caminho.


II

O Café do Vitorino encontrava-se mais animado do que era habitual. A televisão tinha falado noutro assalto lá mais para baixo, quase na serra algarvia. Tinham espancado os velhotes, tinham-lhes roubado as poucas economias e deixado amarrados por largas horas, enquanto não foram descobertos por um vizinho.
Havia no ar uma exaltação e um nervosismo contagiantes. Tinha ido ao Café beber um copito e desenferrujar a língua e logo lhe contaram aquela.
Mas ali encontravam-se mais seguros. Sempre eram umas quantas habitações de um lado e outro da estrada. Até agora os ladrões tinham roubado gente isolada nos montes e sempre casais idosos, que novos também já por lá não os havia. Nunca tinham roubado em aldeias, por mais pequenas que fossem. Quando o faziam faziam-no pela certa, sabiam ao que iam. Roubavam gente como ele e a sua Mariana, sós, desamparados, velhos e trôpegos, incapazes de se defenderem. Há muito que se deveriam ter mudado para a aldeia, quando o último dos filhos abalou deviam-no ter feito. Ela bem havia insistido. Mas ele, teimoso, preso a umas parcas courelas que desde moço trabalhara ainda em companhia de seu pai, fora ficando. Agora já nem força tinha para trabalhá-las. Deveria ter vendido tudo em bom tempo e mudado para o povoado. Mas aquele malvado apego à terra tinha podido mais. Vendê-la era vender-se, quando em tal pensava punha-se-lhe um peso e uma escuridão na alma que só ele sabia. Agora era aguentar-se até que a morte o viesse buscar.
A conversa ia animada no Café. Um gravatinha, bancário na vila próxima e que, como filho da aldeia, ali passava os fins de semana, dizia, toda farroncas, que a ele não o haveriam de pilhar. Olha que se fosse com ele, havia de ser bonito, que lhes metia um tiro no bucho, que fazia e acontecia. O Vitorino olhava-o de soslaio. Não morria de amores por aquele desde que por causa de uma sua gracinha se tinha visto em apuros com a inspecção das actividades económicas, que esses também só apoquentam os pequeninos. Tinha aparecido no Café com uma garrafa de vinho de rótulo todo catita e por força que o Vitorino havia de enchê-la e servir com ela as taças. Em má hora o Vitorino acedeu. Logo chegam os fiscais e embirram com a garrafa que era de um vinho caríssimo. Então servia vinho aos fregueses em vasilhame que não era o próprio? E por pouco não o encoimavam, não fora as explicações prestadas e o apoio de todos os fregueses, que o gravatinha na altura pisgou-se. Mas lá parlapatão era ele. E não é que daí em diante alguns farsantes entravam no Café e lhe pediam vinho da tal marca, no meio de grande chacota? Vitorino não era homem para motetes e um belo dia em que acordou mais assomadiço, resolveu não abrir o Café. Por três longos dias aquelas portas se mantiveram encerradas. O Vitorino está doente! O Vitorino ausentou-se! Que nada, estava amuado. E os fregueses, que andavam como pássaros a quem houvessem destruído o ninho, fizeram romagens a sua casa: que não ligasse, aquilo eram coisas de moços, que ele perdia o seu negócio e eles o convívio... E ao quarto dia Vitorino reabriu o Café, que sempre era preferível aturar os fregueses do que a mulher, que nesse intermédio o havia infernizado. E quando, nessa manhã, as portas se abriram, foram tantas e tais as manifestações de agrado da clientela desarvorada que Vitorino se comoveu.
Era tempo de regressar a casa. Sempre era meia légua que ele, Aníbal do Monte Lobo, ainda era capaz de fazer em meia-hora. Mas cada vez lhe ia custando mais. De repente estugou o passo, ao lembrar-se que a mulher há horas que estava para lá sozinha.


III

A mulher olhava-o com um ar repreensivo.
Aníbal estava sentado com a velha escopeta sobre os joelhos. Tinha-a acabado de carregar. Comprara naquela manhã cartuchos, coisa que já há muito tempo não havia naquela casa, desde que as pernas se recusaram a marchar por veredas e córregos em busca de caçapos e perdizes.
Aquilo não era viver, dizia-lhe. Estavam para ali como animais acossados. Se viessem para roubá-los pois que viessem, que o roubo havia de ser coisa de pouca monta. Mas sangue derramado em sua casa, gente ferida ou morta em sua casa, só eles. Como iam viver depois com isso? Que maluqueira se lhe havia metido na cabeça? Que haviam de ir para um lar. O compadre Damásio, que estava na Junta de Freguesia, era homem com muitos conhecimentos e haveria de meter um empenho. E que ou ele ia falar com o compadre ou ia ela.
Aníbal, sentado na rua do monte, olhava os longes.


IV

O dia chegou.
O táxi esperava-os. Já tinham carregado os poucos tarambecos que haviam de levar consigo. A maior parte, que pouco préstimo tinham, haviam-nos distribuído pelos vizinhos.
O motorista esperava-os, impaciente. Aníbal demorava-se, olhando uma última vez os campos em redor, como se os afagasse com os olhos.
Entraram por fim no carro e sentaram-se, sem trocar palavra. Ele, num gesto tão pouco comum, pousou a sua mão sobre a dela. Se algum deles chorou nunca o souberam. Não se olharam nem tampouco olharam para trás.



 
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sábado, abril 16, 2005
  Bilhete Postal


Falemos claramente, se não conseguimos eliminar os dejectos caninos das nossas ruas e praças então reconheçamo-nos definitivamente vencidos e tentemos virar a coisa a nosso favor.
Já estou a ouvir os mais empedernidos defensores da coisa pública vociferarem que agora se abandona esta luta que é de todos, esta cruzada em prol da higienização dos espaços públicos, esta denodada luta em defesa da saúde pública, este objectivo que é o de subir mais um patamar de civilidade ao tratarmos bem os animais domésticos e não andarmos a pisar merda nos espaços públicos que presuntivamente são de todos. Mais devagar, mais devagar, se esta luta é de todos quantos estão empenhados em travá-la? As autoridades municipais para quem parece ser indiferente haver mais ou menos merda nas ruas? As madames que olham embevecidas os lulus enquanto estes levantam graciosamente a perninha e deixam a sua rosquinha malcheirosa no empedrado? Afinal, pergunto eu, quantos destes todos estão deveras interessados nesta luta? Sim, quantos? Luta em defesa da saúde pública? Bem, as maleitas provocadas pelas fezes caninas são perfeitamente curáveis e se o não forem sempre vos digo que de alguma coisa a gente há-de morrer. Um patamar mais na longa marcha a caminho da civilidade? Há prioridades, senhores, há prioridades. Por acaso já se constuíram todas as acessibilidades aos novos estádios? Parece que não. Construir uma obra pública para divertimento das massas e deixá-las sem acessos não revela uma grande falta de civilidade? Ora aí têm!
Então como podemos virar a coisa a nosso favor? Com imaginação, meus senhores, com maginação. Vou dar-vos algumas sugestões:
-organizar ralis pedestres, como por exemplo "Tente chegar ao fim da Avenida sem cagar os pés". O que as pessoas não se iam divertir;
-formar técnicos numa nova forma de adivinhação a que se poderia chamar cacomancia. Eu explico: os turistas interessados recorriam aos serviços do cacomante, este fazia o turista rodar sobre si próprio umas quantas vezes e depois de este estar suficientemente entontecido mandava-o caminhar. É claro que poucos passos volvidos o interessado toparia com dejectos caninos. Aí entrava a sapiência do cacomante: pela altura do dejecto, sua consistência, cor, aroma e outras características que só o cacomante conhece, todos sabem que estas práticas têm os seus segredos, ele exercitaria então a nobre arte da adivinhação;
-outra sugestão ainda: poder-se-ia instituir um prémio nacional para a povoação com maior densidade de dejectos caninos por metro quadrado. Chmar-se-ia à competição "A povoação mais merdaleja de Portugal" e o honroso galardão seria ostentado por um ano.
É claro que estas são apenas algumas sugestões, muitas mais os leitores poderão engendrar se se derem ao trabalho. Eu fico-me por estas.
Passem todos muito bem e até à próxima. 
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domingo, abril 10, 2005
 
CONVERSAS NO OCASO


-Compadre, Nunca mais voltou ao seu monte?
-Nunca mais. Da última vez que lá fui, já lá vão uns bons dois anos, fiquei tão descoroçoado que jurei nunca mais lá voltar. Até me deu vontade de chorar. É verdade, não tenho vergonha de dizer, compadre. Aquilo já não era a mesma coisa. Estava tudo a mato. Na horta havia um ervaçal mais alto do que eu. A parede da nora estava quase toda caída, do monte já só havia pedras e o chão da casa. Nem queira saber o desgosto que me deu quando vi aquilo naquele abandono. O sítio onde passei quase toda a minha vida já não existia. Olhos que não vêem coração que não sente. E eu, em não vendo, não me lembro. É melhor assim. Nunca mais lá hei-de voltar. Nunca mais!...
-Pois é, compadre! Estamos a chegar ao fim, a nossa licença está-se a acabar e tudo aquilo que fomos, tudo aquilo que tivemos, já não existe. É a vida, tal como os alcatruzes da nora, uns vão e outros vêm, uns sobem e outros descem. E a gente já começou a descer há muito tempo, estamos quase no fundo.
-Descendo ou subindo, compadre, tanto dá. Mas sabe vossemecê o que é que ainda lá estava tal como eu havia deixado? As nogueiras que o meu pai tinha semeado lá p'ró pé do barranco. É verdade, ainda lá estavam e ainda lá hão-de estar depois da gente partir, se ninguém as arrancar. Se aquelas nogueiras falassem muito tinham p'ra contar. Semearam aquilo tudo de eucaliptos mas não tocaram nas nogueiras. Não lhes tocaram, é verdade. Se elas falassem... Lembra-se o compadre da Maria Zefa, da Zéfinha? Está claro que se lembra. Pois era eu ainda solteiro o raio da mulher começou a aparecer lá pelo monte quase todos os dias. Andava lá no seu negócio de compra de ovos e galinhas para ir vender à vila e começou-me cá a parecer que eram vezes demais aquelas de aparecer lá pelo monte. E vá de falinhas mansas para mim, que eu estava já um belo moço, se já tinha namorada e que mais isto e mais aquilo... Não sei se o compadre a conheceu por esse tempo. Era mulher dos seus trinta anos, de perna rija de subir e descer por esses córregos, com um belo peito e cores sadias. Não se lhe conhecia homem certo mas também não eram muitos os que se gabavam de lhe ter posto a mão em cima.
-É verdade, compadre, é verdade. Olhe, um dia a vi eu, aqui no mercado da vila, assentar um chapadão num mais atrevido que a quis apalpar que o homem até parecia que tinha ficado com almareios e, a modos que envergonhado, meteu o rabo entre as pernas e marchou-se dali sem dizer palavra!
-Pois era assim a Zéfinha, sim senhor... Mas como eu lhe ia dizendo, ela começou de aparecer lá pelo monte mais vezes do que aquelas que seriam precisas lá para o seu negócio de compra e venda de ovos e galinhas. E vá de me fazer gaifonas. Eu, que ainda era franganote, nem às sortes tinha ido, comecei a magicar naquilo, comecei a magicar e resolvi que quando melhor calhasse haveria de tentar a minha sorte para ver se a Zéfinha queria aquilo que eu também queria.
E o dia chegou. Foi a meio da manhã. A minha mãe, que Deus haja, e as minhas irmãs tinham ido lavar roupa à ribeira. O meu falecido pai andava a apanhar cortiça com dois homens que trazia à jorna. Eu tinha ficado sozinho no monte a rachar lenha. E nisto apareceu-me a Zéfinha. Uma grande cesta à cabeça e outra na mão, toda corada que a manhã estava quente e ela já tinha feito muitos caminhos. Veja lá, compadre, que tudo me lembra como se tivesse sido ontem.
-Pois comigo acontece a mesma coisa. Coisas que aconteceram há já tantos anos ainda hoje me lembram como se fosse ontem e as coisas que aconteceram há muito menos tempo, por mais voltas que dê à cachimónia, não consigo lembrá-las. O tempo tudo nos tira, até a memória.
-Pois é assim tal e qual. Pois a Zéfinha chegou à rua do monte, pôs as cestas no chão e como não visse ninguém chamou. Eu, que me encontrava debaixo das nogueiras, lá p'ró pé do barranco, a rachar lenha, sempre era mais fresco e o calor já era muito, tinha parado de trabalhar a vê-la e chamei-a. Ela, assim que me viu, veio caminho abaixo. Agora, agora é que tem de ser, pensei. E ela a descer o caminho para ir ter comigo e eu a marchar na direcção dela. Perguntou-me se estava sozinho. Disse-lhe que sim. Disse que estava muito calor e tirou o lenço da cabeça. Trazia o cabelo solto debaixo do lenço, um cabelo bonito, farto. E ria-se para mim. Lembra-me como se fosse ontem. E eu, tem-te não caias, agarrei-a por um braço. Ela, em vez de se mostrar esquiva, encostou-se a mim. Fiquei desvairado. Puxei-a para baixo das nogueiras, para trás do monte de lenha. Deitou-se no chão, mansa como uma rola. E foi aquela a minha primeira vez, compadre...
-E nunca mais se voltaram a encontrar?
-Voltámos, voltámos! Só que minha mãe começou a desconfiar da fartura. E eu apercebi-me disso pois quando a Zéfinha ia ao monte fazer a sua negociata já a minha mãe não nos tirava os olhos de cima. As mulheres percebem essas coisas melhor do que os homens. De maneira que tivemos de lhe trocar as voltas. Não ia a Zéfinha ter comigo ia eu ter com ela. Passámo-nos a encontrar às escondidas, aí por esses córregos. Belos tempos. A coisa terá durado aí uns seis meses. Depois, de repente, a Zéfinha desapareceu. E sem dizer palavra!
-Houve quem a visse mais tarde lá para as bandas do Barreiro. Que se tinha juntado com um marchante...
-Pois foi, compadre. E parece que o marchante era o mesmo que aparecia por aí e lhe comprava os ovos e as galinhas. Eu é que nunca mais a vi! Depois arranjei namoro com aquela que haveria de ser a minha mulher, já lá está, coitada, fui às sortes, fiz a tropa, casei-me, vieram os gaiatos, mais trabalhos e mais canseiras e assim se foi uma vida!
-O compadre onde é que fez a tropa?
-Em Beja, no 17. E o compadre, parece que foi em Elvas?
-Pois foi em Elvas, sim senhor! Oh Elvas, oh Elvas, Badajoz à vista... Algumas vezes lá fui, a Badajoz, poucas que o dinheiro não era muito e as espanholas eram caras, Ah compadre, que se pudesse voltar atrás!
-As coisas estão assim feitas. Hoje uns, amanhã outros. E não vale a pena querermos o contrário, porque a vida é assim mesmo!
-Pois vossemecê em Elvas e eu em Beja lá fizemos a nossa tropa. O passadio não era bom mas quando se é moço tudo se aguenta. Os percevejos eram mais que muitos, compadre.
-A quem você o diz!
-E muito tempo se passava sem virmos a casa. O dinheiro era pouco. O meu pai, coitado, lá me ia mandando aquele pouco que podia. Ainda me lembro quando fui a apanhar o comboio para Beja. Eu e o meu pai, cada um à vez em cima de um burro que possuíamos, que o caminho era comprido, lá fomos até à estação. Eu com a guia de marcha, uma merenda que a minha mãe me tinha preparado, pão, uma marmita com carne e azeitonas, como tudo me lembra, e um saco de chita que a Josélia, a minha mulher, na altura ainda namorada, me tinha feito. O compadre lembra-se que era costume as namoradas oferecerem esses sacos quando os moços partiam para a tropa?
-Se me lembro, se me lembro! Também, eu levei o meu saco, também eu!
-No monte tinham ficado as minhas irmãs e a minha mãe com a lagriminha ao canto do olho a ver-me partir. E o meu pai a dizer que não era o fim do mundo, que era o destino dos moços e que a tropa só lhes fazia bem, ensinava-os a serem homens e que mais isto e mais aquilo. Tudo para nos animar, já se vê. E lá fomos. De caminho sabe o que fiz, compadre? Apanhei um ramo de medronheiro para levar cimigo para o quartel, coisas de moços, pensava eu que assim haveria de ter menos saudades cá dos sítios. Popis sabe o que lhe digo? O ramo de medronheiro nem chegou a Beja. Quando chegámos à Funcheira juntámo-nos com uns dos lados de Setúbal que iam também p'rá tropa, para o mesmo quartel, e que nunca tinham visto medronhos, perguntaram o que era aquilo, se se podia comer, e toma lá daqui, toma lá dali, comeram-me os medronhos todos. Tinham lá uns ares de rufias, de fadistas, que logo me fizeram desconfiar. Mas depois de os ficar a conhecer melhor, com o tempo, eram todos bons moços, boa rapaziada! Um deles foi até o meu melhor amigo na tropa. Belo moço! Nunca mais soube dele!
-Pois era assim mesmo, faziam-se grandes amizades na tropa. Em Elvas tive eu um grande amigo que era de lá mesmo. Fazia contrabando para Espanha. Aquilo era lá coisa de família. Já o pai e os irmãos faziam o mesmo e ele parece que desde muito gaiato começou a acompanhá-los naquelas andanças. Nos dias em que estava de licença era certo e sabido que lá ia para o contrabando. Eu, às vezes, perguntava-lhe: "Mas tu não tens medo que te apanhem? Olha que se te apanham metem-te no forte. Dessa não te safas!" "Qual apanham!?" dizia ele. "Ainda não nasceu aquele que me há-de apanhar. Conheço a fronteira como as minhas mãos. Não há buraco, não há caminho que eu não conheça." E o certo é que não o apanhavam. Um dia diz-me ele: "Tens de vir comigo!" "Tás maluco, eu tenho lá vida para isso!?" "Já te disse, vens comigo. Ganhas uns cobres e se gostares vais mais vezes!" "Homem, não vou, nem penses nisso!?" Mas ele tanto me desafiou, tanto me desafiou, que eu fui. Com alguma sorte podia ganhar-se uma boa maquia e eu fui.
-Pois então o compadre foi com os contrabandistas?
-Pois fui. A primeira e única vez. Aquilo não é p'ra qualquer um, compadre. Tem de se ser muito afoito. Mas quer ver o compadre como é que aquilo foi? Aquilo era uma jolda de cinco homens, seis comigo. Cada um levava uma mochila com uma arroba de café. Quando se cerrou a noite lá marchámos. Depois de andarmos um grande pedaço, diz-me ele: "Agora a partir daqui não falas, não dizes nada. Nem conversas, nem cigarros. Está entendido? E vais sempre atrás de mim. O que eu fizer fazes tu!" Acenei que sim com a cabeça e lá fomos. Eu ia mais pequenino que um rato, todas as sombras me metiam medo. O pior foi quando atravessámos o Guadiana. Eu, que não sei nadar, ia com medo de cair nalgum cachafundão e pr'ali morrer afogado. Mas lá passámos sem novidade, com a água pela cintura. Eles lá conheciam os melhores sítios. . Eu ia de tal modo assustado que nem sequer me sentia molhado. Lá quando chegámos a um tal sítio, que era assim um barranco escondido, fizeram alto e esperámos um bom pedaço. Ouviu-se um assobio e um dos nossos logo respondeu com outro assobio. E logo apareceram os espanhóis. Eram cinco, cada um com a sua mochila. Falaram uns com os outros numa linguagem que eu não entendi nada, aquilo era tudo gente que se entendia em espanhol, e lá voltámos para trás. Trazíamos peças de bombazina, que era o contrabando que se trazia para cá. Como eram cinco mochilas e a gente éramos seis lá se decidiu que eu não trazia nada à volta, porque era a primeira vez que fazia aquilo. E lá vim mais leve. Mais leve da carga que o medo agora até parecia que me pesava mais. Mas lá voltámos em bem. E ainda ganhei uns bons tostões com aquele trabalho. Mas nunca mais voltei, ele bem que me desafiou mais vezes mas eu nunca mais fui. Tinha-me safado daquela não me ia meter noutra. Não, que eu não tinha nascido para aquilo. Ele é que sim, lá continou a ir e nunca o apanharam. Tinha feito daquilo modo de vida.
-Sempre é preciso muita afoiteza, compadre. Eu também não era homem para levar uma vida dessas!
-Pois eu há pedaço não acabei a minha conversa, quando fui com o meu pai montados no mesmo burro a apanhar o comboio à estação para Beja. Pois quer ver o compadre, o comboio chega e vai daí o meu pai mete-me uma nota de cem escudos na mão. Digo-lhe eu, "Meu pai, eu não preciso do dinheiro, lá para onde vou dão-me roupa, cama e mesa e ao pai o dinheiro fica-lhe a fazer falta". "Leva lá o dinheiro, filho, que te há-de fazer mais falta a ti do que a mim!" Vai daí dá-me um grande abraço, encomendou-me e lá marchei para o comboio. Foi a única vez que o meu pai me abraçou, era muito amigo dos filhos mas não era lá homem para essas coisas.
-O meu pai também era assim. E depois que nos morreu a Maria, a nossa irmã mais nova, morreu com cinco anos de um garrotilho, teve um desgosto tão grande que depois disso quase não me lembro de o ver rir. Sempre triste, sempre triste...
-Quando olhamos para trás já são mais os mortos que contamos do que os vivos! Dos seus dois irmãos já só é vivo o Chico?
-Pois é assim, compadre. Está lá p'ró Algarve. Já não o vejo há uns bons cinco anos. A última vez que o vi foi quando foi a enterrar a minha mulher. A gente já só se vê em alturas de desgraça. O compadre ainda tem os filhos. Agora eu nem isso. Casei-me mas Deus não me deu a dita de ter filhos.
-Tenho filhos, tenho, mas de pouco me serve. Cada um abalou lá à sua vida e eu estou tão sozinho como o compadre.
-Não diga isso que eles sempre o vêm visitar quando podem!
-Lá isso é verdade, mas o maior desgosto que eu tenho é que nenhum deles quis seguir a vida da agricultura e isso é que me obrigou a vender as poucas terras que possuía. Mas também não tenho lá muitas razões para me queixar, eu sempre lhes disse para seguirem outro modo de vida que isto da agricultura o que dá mais é padecimentos. Mas sempre esperei que o moço seguisse este modo de vida. Mas o que está feito, está feito, depois de cavalo morto cevada ao rabo!
-O compadre não devia ter vendido a terra.
-Mas o que havia eu de fazer, compadre? As moças abalaram-me cada uma para o seu lado, casaram e ala. A mais nova foi para França com o marido, por lá ficaram alguns anos e lá conseguiram arranjar a vidinha. Verdade seja dita, nenhum deles precisa de mim. A oitra está lá p'ró Algarve. O moço empregou-se, e bem empregado, e eu vi-me sozinho com a patroa. Enquanto tive forças para me mexer fui trabalhando. Mas os anos passam e não perdoam. E veio o tempo em que já não era capaz, compadre. Com grande desgosto meu vendi o que tinha e vim mais a mulher aqui para a vila, para uma casita que comprámos, não iam ficar estes dois trastes sozinhos, lá pelo monte. Depois a patroa começou de me andar doente, cada vez mais doente, sei lá onde é que eu fui, de médico para médico, fartei-me de gastar dinheiro, que isto quando toca à saúde um homem não olha a gastos, mas de nada serviu. Morreu mirradinha, coitada. E eu ainda mais sozinho me vi, compadre. Ainda passei uns tempos em casa de cada uma das filhas mas elas têm lá a sua vida e eu não gosto de ser empecilho para ninguèm. Que elas nunca me trataram mal, mas eu gosto cá muito da minha independência e vai daí resolvi-me a vir cá p'ró asilo. Do mal o menos.
-Tal qual eu, compadre. Para onde é que eu havia de ir se nem filhos tenho?
-Sabe, compadre,. o meu pai e a minha mãe viveram sempre comigo até morrerem, já de velhinhos. Mas os tempos eram outros, as famílias eram mais unidas. Agora tudo é diferente. Há mais abastança, é verdade, mas ganharam-se umas coisas e perderam-se outras. Veja lá vocemessê, os moços hoje têm transportes que os trazem até à escola e os levam até casa. No tempo em que eu pus o moço nos estudos ainda nada disto havia. Que a gente já não fala do nosso tempo que então nem escolas havia.
-Pois não, compadre. Eu aprendi a ler quando fiz a tropa.
-Também eu! Mas deixe-me contar-lhe uma coisa. O meu moço era bom nas letras e quando fez a quarta classe a professora veio falar comigo e disse-me que era uma pena que o gaiato ficasse por ali. Eu comecei cá a pensar que para bruto bastava o pai e resolvi-me a metê-lo nos estudos aqui no colégio da vila. O gaiato tinha que cá ficar em casa de alguém conhecido, que o monte era longe e ele não podia ir e vir todos os dias p'rá vila, a coisa não me ia ficar barata mas o gaiato merecia o sacrifício e tudo se havia de arranjar. Vim à vila saber das coisas, da pensão, da matrícula, dos livros e vi que precisava de dois contos de réis para as despesas. Mas eu não os tinha, compadre, nem tinha a quem os pedir. Mas já tinha resolvido que o gaiato ia estudar e tinha mesmo de ir, desse lá por onde desse. Eu quando metia uma coisa na cabeça só se não pudesse de maneira nenhuma. Tinha um pedacito de terra, coisa pouca, com umas trinta oliveiras e alguma terra de semeadura que me ficava já um pouco despontada e resolvi-me a vendê-la. Vim à vila para arranjar comprador e fui ter com o Manuel António que eu sabia que anadva a comprar terras e era pessoa minha conhecida. "Porque assim e porque assado, agora não estou interessado em comprar terras, depois essa que o amigo me quer vender fica-me tão despontada, mas se fazemos negócio é só porque o amigo é quem é e está numa aflição e mais isto e mais aquilo", bom, resumindo e concluindo, o homem oferecia-me pela terra dois contos de réis. Ora eu contava vendê-la aí por uns seis. "Oh Manuel António, a terra vale bem uns seis contos de réis". "Não diga isso, homem, que a terra fica longe de bom caminho, e isto agora é má altura porque ninguém está a comprar, é como lhe digo, se lhe pus um preço é porque sou seu amigo e o vejo numa aflição!"
-E era o homem seu amigo, compadre!
-Pois está o compadre a ver o amigo que eu ali tinha. De maneira que lhe disse que ia ver se me davam mais alguma coisa noutro sítio. "O amigo faz aquilo que entender mas desde já o aviso que ninguém lhe dá mais do que aquilo que eu lhe ofereci."
-Aquilo estavam lá todos combinados, compadre!
-Nem mais. Desanimado, entro na venda do Chico Alberto para beber um copo. Quem havia de lá estar, o lavrador da Chaíça, pessoa com quem eu tinha convivência por já termos feito alguns negócios.
-Também o conheci, compadre. Pessoa séria!
-Pode dizê-lo. Mas escute, o homem viu-me com uma cara tão desanimada e meteu-se comigo. E eu lá desabafei. Pois sabe o que o homem me respondeu? "Sou eu que lhe vou emprestar os dois contos de réis. Paga-me depois quando puder!" E logo ali mos passou p'rá mão. E foi assim que lá mandei o gaiato p'rós estudos.
-O lavrador da Chaíça era homem muito sério. Havia poucos como ele!
-E hoje ainda há menos, compadre. De modo que lá paguei depois o dinheiro ao homem como pude. Nem um tostão de juros me cobrou.
-Outros tempos, outros tempos. Nem tudo era bom, é verdade, havia muita miséria por essas serras afora, mas os homens eram mais sérios!
-Bem, compadre, já se está a pôr fresco e já me começa a doer a porra do joelho. E quando estou assim muito tempo sentado ainda é pior. Mau, mau é quando me deito. Parece que a dor está lá debaixo do travesseiro à minha espera. Ainda ontem passei uma noite terrível!
-As malazengas já não nos largam, compadre. É o caruncho!
-Bom, vamos lá! Mas antes ainda vamos ali beber um copito que amanhã é outro dia!

 
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sexta-feira, abril 08, 2005
 
CRISTAIS PARTIDOS


A bruxa do Monte Novo não tinha um ar andrajoso nem cavalgava uma vassoura; nem sequer tinha aquela inevitável verruga no nariz, como todas as bruxas que se prezam, isto conforme as histórias com as quais, num sentimento confuso de encanto e temor, povoámos a nossa imaginação no já distante reino da infância. Não senhor, a bruxa do Monte Novo vestia-se bem, dizia-se até que só comprava as suas roupas nas melhores lojas da capital, era frequentadora assídua do cabeleireiro, deslocava-se num carro daqueles que se dizem de gama alta e, naturalmente, usava telemóvel. Para além de tudo isto, que já não é pouco, era , nos seus já entrados quarenta anos, uma morena ainda viçosa que fazia virar a cabeça a muitos homens quando, num ar emproado de grande dama, deixava o seu retiro do Monte Novo e vinha fazer compras à cidade, ou fazia um pouco de vida social na pastelaria mais chique, frequentada pela boa sociedade. E ainda que se quedasse sozinha à mesa da pastelaria, pois que a gente de bem, por decoro e prosápia, com ela não se relacionava, publicamente desde já se diga, era vê-la com um ar de soberano desdém, sorvendo o seu chá com estudada elegância, detentora que era dos muitos segredos que as ditas boas casas escondiam e de que ela era profunda conhecedora. Algumas das damas que, com um ar senhoril, ostensivamente a ignoravam ou apenas e só lhe faziam uma muito subtil e quase imperceptível saudação, meneando levemente as pintadas cabecitas louras e batendo com suavidade as pestanas eram, foram ou seriam suas clientes.
E tanta era a freguesia que havia mandado construir, no terreiro do Monte, um aparcamento para os inúmeros automóveis que lhe demandavam a porta, em procura de remédio para os seus males, quase sempre males de amores. E alguns, com certeza muitos, vinham de paragens distantes, pois a sua fama havia chegado longe.
Nunca pôs anúncio na imprensa nem nas rádios locais. E de resto tinha, ou usaria como máscara, nunca ninguém o soube, um nome bem comezinho, nada daqueles nomes exóticos de consonâncias raras, lembrando longínquas, misteriosas e esotéricas culturas, já extintas, o que até tem mais sainete, onde estas capacidades, ao que se diz, teriam tido notável desenvolvimento, hoje presumivelmente só acessíveis a um número restrito de iniciados. Madame Margarida se chamava ela e, a não ser o uso de Madame, nada nos indicaria estarmos em presença de alguém que se dedicasse ou tivesse artes fora do alcance do comum dos mortais: recuássemos nós cinquenta anos e poder-se-ia supor que Madame Margarida seria porventura "patroa" de uma "casa de passe", pois de madames eram chamadas nesse tempo, ilação nada abonatória para a pessoa em causa. Mas onde é que tudo isso já vai!
Toda a gente sabe que as capacidades curativas, premonitórias, de adivinhação e outras, ou como ela dizia de forma sintética, capacidades extra-sensoriais, com o que muito impressionava os clientes, só são acessíveis a alguns eleitos: ou se têm ou não se têm, nascem connosco, não se aprendem, não se dão e não se vendem. Isto mesmo dizia ela, segundo me contaram.
Mas uma bruxa que se queira a par com a modernidade, que se queira aceite e, enfim, que se queira credível, não pode, desde logo, chamar-se de bruxa nem limitar-se a deitar maus olhados ou a lançar feitiços. Afinal já ninguém acredita nessas patranhas. E o mesmo se diga dos bruxos da modernidade, que até se chamam de doutores. O melhor será dar-se alguns atributos como os de astrólogo, parapsicólogo, cartomante, quiromante, tarólogo ou outros arrevesados nomes que tais. E se se possuir diploma emoldurado na parede tanto melhor. Se somos detentores de capacidades raras devemos decorá-las com algum saber académico, de outro modo não seremos mais do que autodidactas e toda a gente sabe que um autodidacta nunca é levado de todo a sério. E porque era avisada era assim mesmo que procedia Madame Margarida: tinha títulos e até tinha diploma comprovativo de que frequentara um curso de parapsicologia, no qual havia sido aprovada com elevada classificação. É óbvio que toda esta parafernália de saberes, atestados ainda por cima com diplomas, transformou a bruxa de antanho numa profissional, numa técnica, enfim.
Mas já vai longa a apresentação de Madame Margarida. E tudo isto vem a propósito de vos querer contar um caso singular que com ela ocorreu e que, desde já vos aviso, não concorre para abonar a sapiência da mesma nem a honestidade de processos utilizados. Longe de mim cometer o despautério de generalizar relativamente a tantos outros que a tais práticas se dedicam. Além de que, no caso que vos vou narrar, existe uma atenuante, uma atenuante que me parece merecer-nos alguma compreensão, pois que neste caso andou metida a mão de Eros, esse mesmo, o deus do amor. E só é de todo insensível e incapaz de compreensão aos devaneios do amor aquele que nunca amou. E quem nunca amou apenas nos poderá ser digno de lástima, por ser um ente humano truncado, incompleto, desconhecedor daquele sentimento doce e eterno que é capaz de nos elevar ao Olimpo celeste ou de nos rebaixar aos infernos profundos, e por isso é o mais humano de todos os sentimentos: sublime e torpe, grandioso e mesquinho, generoso e cruel.
Mas deixemo-nos de divagações e contemos o que se passou.
A Madame Margarida não se conhecia homem, pelo menos de há três ou quatro anos a esta parte. Quando aqui se estabeleceu, inicialmente numa pequena casa térrea, na parte antiga da cidade, numa zona de ruelas e becos, antigo bairro de mouros e judeus, trazia parceiro que, como ela, também se dedicava às artes esotéricas. Dava pelo nome de Doutor Kebir, assim mesmo, com kapa e tudo, este sim, um nome de sonoridades exóticas, a lembrar culturas distantes e saberes estranhos. Era um homem com um perfil aquilino, alto e magro, de cavanhaque e longa cabeleira, trajando sempre de negro. Era, como é bom de ver, uma personagem que cultivava um estilo misterioso e distante, de todo conveniente ao seu mister. Mas um dia as coisas parece que azedaram entre ambos, vá lá saber-se porquê, e o Doutor Kebir desapareceu, misteriosamente, da circulação. Não se sabe de onde tinha vindo nem para onde se teria ausentado este Doutor. Vidas misteriosas, já se sabe.
Quando se separaram já se haviam mudado há algum tempo para o Monte Novo, que compraram e recuperaram. É bom de ver que a compra do monte, situado nos arredores da cidade, fora ditada por razões de carácter profissional e não por mera ostentação, tão comum aos novos-ricos: o monte propiciava visitas discretas, longe dos olhares sempre incómodos e indagadores de amigos e conhecidos, pois aquilo que leva um comum mortal a fazer tais diligências é quase sempre assunto inconfessável, porque do foro mais íntimo. E eles, no louvável propósito de salvaguardarem a privacidade dos seus clientes, haviam optado pela compra do monte.
A vida tinha-lhes sorrido mas, pelos vistos, nem tudo lhes correria de feição.
As más-línguas locais bem que porfiavam em tentar encontrar homem para Madame Margarida. Podia lá ser, uma mulher ainda em tão boa idade e tão apetecível. Mas o certo é que até ao presente nem chus nem bus que apontar, para desespero de muitos que sempre se comprazem em esmiuçar a vida alheia, useiros e vezeiros que são em ver o argueiro no olho alheio e em não ver a trave no seu.
E os tempos foram correndo, calmos e prósperos para Madame Margarida, até que um dado dia lhe entra em casa uma cliente. Era mais um caso de esposa que se cuidava atraiçoada e vinha em busca de lenitivo e cura, cura para o mal do marido. Que este já não a procurava como dantes soía fazer, que por vezes chegava a casa a desoras, o que dantes não acontecia, que após longos períodos de afastamento e absoluta frieza a obsequiava com prendas surpreendentes, prova de que o remorso e o arrependimento por vezes prevaleciam sobre o seu mau proceder que, enfim, já não era o mesmo homem. Se tinha outras e mais fundadas provas de que outros amores o haviam desencaminhado dos seus deveres conjugais? Que não, que não tinha, e nem precisava, nestas coisas coração de mulher adivinha.
Qual a terapia recomendada não o sei. Nunca recorri a tais processos e aqueles que recorrem parece que têm algum pejo em desvendar aquilo que se passa entre eles e o conselheiro vidente. Também nunca o indaguei junto daqueles poucos que conheço que já foram à "bruxa". Procuro intrometer-me o menos possível na vida alheia. Mas estou em crer que muitos outros que conheço também já lá terão ido, só que sobre o assunto guardarão eles o mais profundo sigilo. Adiante.
As visitas continuaram, prova da pouca eficácia da terapia utilizada, dirá quem desconhece o fim da história.
Falta ainda esclarecer que a cliente de que falamos e o seu desencaminhado cônjuge eram, e ainda são, funcionários públicos e trabalhavam, à altura destes factos, na mesma repartição. Ele, mercê da sua actividade, fazia frequentes deslocações à capital onde por vezes se demorava dois a três dias. E era nessas ocasiões que o ciúme e a desconfiança irrompiam como lava ardente no peito da esposa. Sei, porque esta o contou, que se tinha proposto várias vezes segui-lo discretamente nessas saídas, mas que Madame Margarida sempre a dissuadiu de fazê-lo dizendo-lhe que seriam infrutíferas tais diligências, convencendo-a da quase impossibilidade de seguir alguém na grande cidade por muito tempo sem lhe perder o rasto, ainda mais quando se conhece mal essa mesma cidade, como era o seu caso.
E num determinado dia os acontecimentos precipitaram-se de forma irremediável. E por um conjunto de circunstâncias fortuitas, aquelas circunstâncias que, há falta de melhor, uns atribuem ao acaso, outros ao fado, outros à providência divina e que os antigos, tentando pôr um pouco de razão e ordem nas desordens do mundo, atribuíam aos caprichos dos deuses. Não me parece que tenhamos avançado, neste sentido, muito mais do que eles. Aconteceu que o marido se havia ausentado para a capital, em serviço, e por lá se iria demorar dois dias. Quando ela, ao segundo dia de ausência deste, comparece pela manhã no local de trabalho uma colega, intrigada, pergunta-lhe:
-Então, já regressaste de Lisboa?
-Se já regressei de Lisboa?
-Sim, é que o meu marido telefonou ontem à noite para o teu, creio que para combinarem uma caçada no próximo fim de semana, e do hotel responderam que ele tinha acabado de sair com a esposa.
Imaginem a comoção. Mas não se desmanchou. Conteve-se e respondeu-lhe que sim, havia acabado de chegar, que agora com a auto-estrada a viagem se fazia com mais rapidez e até com mais conforto e segurança.
Terá passado todo esse dia numa angústia profunda. Ele deveria regressar nessa noite. Segundo confessou mais tarde, dias depois, quando já havia serenado, desejou, desejou profundamente, que algo de mau lhe acontecesse, porque aquele desassossego íntimo em que a havia deixado era merecedor de alguma penosa contrapartida na pessoa dele.
Cerca das dez horas da noite encontrava-se em casa fervendo em amarga revolta, preparada para uma homérica disputa conjugal, quando recebe uma chamada telefónica das autoridades comunicando-lhe que o marido havia sofrido um acidente, já depois de ter deixado a auto-estrada. Supunha-se que o acidente havia sido causado pelo piso bastante molhado, devido às grandes chuvadas que haviam caído ao longo do dia e que aqui e ali formavam grandes poças. O estado do acidentado não inspirava cuidados. O acidente, embora aparatoso, não tivera consequências de maior: o carro havia saído da estrada e fora imobilizar-se a cerca de cinquenta metros da via, numa zona de cultivo, livre de obstáculos. O próprio solo, empapado pela água, teria amortecido o impacto. Que já havia seguido de ambulância para o hospital distrital.
Para lá se dirigiu aguardando ali a sua chegada. Sentia-se agora um tanto ou quanto culpada por tão intensamente haver desejado, ao longo do dia, que algo de mau lhe acontecesse. Mas do mal o menos, pela descrição das autoridades,apenas não ganhara para o susto. Oxalá assim fosse.
Quando a ambulância chegou olhou-o friamente. Poude confirmar que o estado dele, aparentemente, não inspirava grandes cuidados. Estava consciente e para além de algumas equimoses na cara e dores no peito, devido à pressão exercida pelo cinto de segurança, de nada mais se queixava. Iria ficar internado para observação e muito provavelmente teria alta no dia seguinte. Isto lhe dizia um dos bombeiros que o tinham transportado, para a confortar, quando chega uma outra ambulância. "Outro acidente?", perguntou-lhe ela. Que não, que era o mesmo acidente, a viatura trazia dois ocupantes.
Com o coração em sobressalto foi ver quem era o outro ocupante. Era Madame Margarida.
Olhou-a longamente, sem dizer palavra. A outra, que estava bem desperta, ao pressentir a sua presença fechou os olhos e adoptou uma pose de completo desfalecimento. Não lhe apeteciam cenas públicas com a esposa ofendida, tinha a sua reputação de mulher e de profissional a defender e ainda por cima, e isto era talvez o mais importante, jazia numa maca, toda dorida e incapaz de se defender.
Depois de muito a olhar voltou-lhe por fim as costas com desdenhosa altivez. Em seguida meteu-se no carro mas não se dirigiu para casa, tomou a direcção do Monte Novo.
No outro dia, pela manhã, os eventuais passantes e os clientes de Madame Margarida, desconhecedores do acidente e do seu internamento no hospital, intrigavam-se com o aspecto do Monte Novo: alguém havia quebrado, à pedrada, todos os vidros das janelas.





Madame Margarida já não reside na cidade. Mudou-se para o Algarve e, pelo que dizem, continua próspera. Aprendeu línguas e tem agora uma clientela cosmopolita.
O casal desavindo rompeu definitivamente. Ele pediu transferência e trabalha agora numa vila vizinha. Dizem que continua a encontrar-se ocasionalmente com Madame Margarida.

 
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AMORAS SILVESTRES


Apeteciam-lhe amoras. E as melhores das redondezas sabia ele onde encontrá-las. Lá para baixo, debruçadas sobre a ribeira, num sítio tão pedregoso que nem mau caminho para lá havia, faziam as silvas um monturo tão espesso que o Sol mal podia penetrá-lo. E quem vinha pela outra margem, que fazia melhor andadura, se as quisesse provar tinha que atravessar a nado o pego de águas límpidas e profundas, que nem sequer em anos de menos chuvas secava. E era aquele silvado como que seu, ainda mais desejado por não ser secreto, pois que patente aos olhos cobiçosos dos viandantes da outra margem apenas era acessível a gaiatos como ele, ávidos dos seus frutos e lépidos como cabritos, a cuja gulodice nem as penedias e muito menos o prazer de um mergulho faziam embaraço.
Saciou-se. Encheu os bolsos. Ao trepar a margem da ribeira, alta naquele ponto em que o silvado caía em cachão sobre as águas límpidas do pego, escorregou e caiu. E o inevitável aconteceu: as amoras, esmagadas dentro dos bolsos, começaram a tingir-lhe os calções com duas manchas rosáceas que alastravam. Tirou as amoras dos bolsos, lassas e a desfazerem-se em suco, e logo pensou em como se havia de livrar dos ralhos da mãe. Sempre ouvira dizer que aquelas nódoas de fruta, e particularmente das amoras, eram difíceis de tirar. Pensou despir os calções e lavá-los na ribeira. A nódoa ainda era recente, não se havia de todo entranhado no tecido e talvez assim evitasse males maiores. Mas ficar de calças na mão à vista de qualquer passante? Afastou da mente, com um esgar, tão humilhante ideia. Poder-se-ia esconder enquanto as calças secavam. Mas essa antevista espera já o impacientava, mesmo antes de ter começado. E, apesar de escondido, quem lhe garantia que ninguém o veria? O melhor era lavar os calções mesmo vestidos. O calor do corpo e o calor do Sol, que a manhã já ia alta, mais depressa lhos secariam e ficaria liberto para fazer o que muito bem lhe apetecesse.
E assim fez. Achegou-se a um local onde lhe era mais fácil lavá-los e nessa tarefa se encontrava quando percebeu sons de areias pisadas e ramos que se afastavam para dar passagem a alguém. Ergueu-se e percebeu que eram duas pessoas, não uma, que se aproximavam daqueles sítios. Mas olha quem eles eram?! A Aninhas Perdigoa e o Aurélio. Mas já ele havia regressado da Suiça? E que faziam aqueles por ali àquela hora? Então a Aninhas não ia casar dentro de poucos dias com o Tonico Marujo? E vinham ambos com tantas cautelas, em tão grande silêncio, que aquilo não era decerto coisa boa. Escondeu-se para ver no que aquilo dava.
Viu-os vagabundearem ao acaso, pisa aqui, pisa acolá, como que procurando um local escondido de olhares estranhos. Não lhes era difícil encontrá-lo: naqueles sítios as moitas de loendreiros, de garridas flores rosáceas, eram densas e as cheias das invernias haviam escavado aqui, depositado monturos de areia mais além, descobrindo ali maciços taliscosos de bordos cortantes como navalhas, encobrindo-os acolá, aqui parede alterosa, ali alicerce encoberto, de modo que os baixios e os loendreiros ofereciam inúmeros esconderijos. Finalmente lá acharam um local que lhes pareceu mais a jeito, um baixio arenoso ainda ensombrado àquela hora matinal pelos arbustos de troncos grossos como árvores que o rodeavam.
Pé ante pé, escondido entre o denso matagal, ficou-se a observá-los.
Sentaram-se e por algum tempo dialogaram, mas tão baixo que ele apenas conseguia perceber uma que outra palavra, murmurada em tom mais emotivo. E enquanto falavam ele afagava-lhe os cabelos, em gestos longos e cariciosos. Depois atraiu-a si e começaram a beijar-se. Deitaram-se sobre a areia e a troca de carícias continuou, cada vez mais intensa e apaixonada. Ele sabia dos jogos amorosos e da sua mecânica, na rua e no pátio da Escola tudo se aprende, mas não sabia dos suspiros profundos, dos gemidos contidos, do êxtase. E um sentimento de desconforto começou por se apoderar dele. Sentia que um rubor lhe tingia as faces, que não era ali o seu lugar. E sentimentos contraditórios dentro dele se debatiam. Apesar do sentimento pudibundo sentia-se também atraído por uma curiosidade de menino para quem a novidade presencial do acto constituía como que uma iniciação àquela parte do mundo dos adultos ainda misteriosa e proibida para ele. Depois pensou que ao ausentar-se poderia trair a sua presença, por qualquer ruído provocado de forma inadvertida. Este pensamento, como se fosse desculpa, confortou-o. E deixou-se ficar, quieto, alapardado e fascinado.
Mas porque aquele sentimento de desconforto pudico de todo não se arredasse, deixou que os seus sentidos se deixassem envolver pelo mundo circundante que, embora familiar, sempre o fascinava, regurgitante de vida, pleno de cores e sons.
De onde estava divisava o pego de águas límpidas; atraiu-o o baque surdo de um peixe que pinchava nas águas tranquilas e caía, ainda lhe divisou o revérbero prateado do dorso, que o Sol matinal fez relampejar; mirou a passarada que volteava no ar, atarefada no seu governo de vida, antes que o calor apertasse e a modorra a abrigasse nos folhedos densos e aprazíveis; mais além um bando de pardais ladinos, envoltos numa leve poalha, desparasitava-se, esfregando com vigor contorcionista os corpos penugentos na areia, numa desbragada e alegre algazarra. O par amoroso serenara e trocava agora suaves carícias. Também ele serenara, o sentimento de pudor e a curiosidade mórbida já não tinham ali cabimento: o tranquilo espectáculo da Natureza onde cabia todo inteiro o par amoroso, e ele próprio, isso sim, fazia sentido.
Ela agora chorava. Via-lhe os ombros estremecerem com os soluços que tentava conter com ambas as mãos na boca. Ele falava e gesticulava de manso. Escondeu-lhe então o rosto contra o peito e os soluços foram-se espaçando, enfraquecendo. Colheu uma flor do loendreiro, que sobre eles caía em capela, e prendeu-lha no cabelo. Deu-lhe um beijo, um último beijo, e partiu. Ela ainda se ficou por longos minutos, sentada, fitando ora o chão ora o azul infinito do céu. Por fim também partiu, de ombros caídos, desalentada.
E só muito depois ele se atreveu a deixar o seu esconderijo e a regressar a casa, com uns olhos brilhantes de espanto e novidade.





-Mãe, não é verdade que a Aninhas Perdigoa vai casar com O Tonico Marujo?
-Não se fala noutra coisa. Mas por que perguntas isso?
-Por nada. Era só para confirmar. Mãe, sabes quem eu vi ontem? O Aurélio. Já veio da Suiça.
-Também já ouvi dizer.
-Mãe, nunca ouviste dizer que o Aurélio e a Aninhas gostavam um do outro?
-Ora! Isso foi coisa dos bancos da Escola. O Aurélio é um moço pobre, criado pela mãe com muitas dificuldades. Perdeu ele o pai tinha ainda meses. Muitas vezes a minha mãe valeu à mãe dele, a tia Mariana.
-E como é que sabes que eles não gostam ainda um do outro?
-E que gostem! O Bento Perdigão nunca iria permitir que a sua querida filhinha casasse com um pobretanas. Rico casa com rico e pobre casa com pobre.
-Mas nas telenovelas...
-Isso são tudo fantasias com que o povo se engana, filho.
-Olha que às vezes não são fantasias!
-Olha lá, mas o que é que tu sabes que eu não saiba, hem?
-Nada, mãe, nada.
E partiu deambulando ao acaso pelas ruas da aldeia. Rebentava por não revelar o seu segredo a alguém. Mas a quem? Sim, a quem? Aos colegas de Escola? Impensável! Tão certo como dois e dois serem quatro em como passada uma hora toda a aldeia o saberia; não passavam de um bando de fedelhos linguarudos e sem-vergonha. E ele tinha consciência, nos seus verdes anos, do escândalo retumbante que assolaria a aldeia e léguas em redor se tal se viesse a saber. Durante dias, semanas até, seria tema de conversa mais que obrigatório, saciaria bem a crónica de maledicência e mesquinhez a que muita daquela gente se dedicava com verrina e paixão doentia. E isso era a última coisa que ele desejava que acontecesse. Não é que ficara a simpatizar com o par? Bom, ele até que já há muito gostava da Aninhas Perdigoa, julgava-a até a moça mais bonita da aldeia: alta, com o seu cabelo castanho levemente ondulado, uma tez suavemente morena, enfim, seria ainda uma criança mas tinha olhos na cara e sabia perfeitamente distinguir o feio do bonito. E quanto ao Aurélio até que lhe tinha simpatia, sempre que vinha de férias, dos trabalhos sazonais na Suiça, metia-se com ele ao vê-lo na rua e ainda no Natal passado lhe trouxera um chocolate suiço, grande como nunca havia visto.
A sua mãe? Nunca o faria, não seria jamais capaz de contar-lhe o que havia presenciado, impedia-o um sentimento de vergonha e decoro. E pelas mesmas e acrescidas razões não seria capaz de contá-lo a seu pai. Só que o segredo era maior do que ele e rebentava se o não partilhasse com alguém.
E quase sem querer achou-se junto à loja de roupas finas para senhora que a Aninhas possuía, que lha havia montado o pai quando ela, com muitos rogos e insistências, lhe dizia que queria trabalhar na cidade, que a pasmaceira da aldeia a deprimia e que precisava de espairecer.
-Chega de mata-mata! - respondeu-lhe ele um dia, já colérico. - Se quer trabalhar trabalhe ao menos para si e não para os outros! Diga lá que negócio quer que eu lhe monte que eu trato já disso. Mas trabalhar para outros não trabalha, porque não precisa. Não tem tudo o que quer? Ora esta, onde é que já se viu?
E assim surgiu na aldeia a boutique de roupas de senhora, porque a filha de Bento Perdigão, no entender de seu esclarecido e abastado pai, jamais trabalharia em casa alheia.
Entrou. Encontrava-se sozinha, sem clientes E tinha um ar infelicíssimo, tão infeliz que até mesmo um coração duro dela se apiedaria. Quando o viu tentou esboçar um sorriso, que saiu frouxo, forçado.
-Bom dia, Aninhas!
-Bom dia, Carlinhos! Então, como têm decorrido essas férias?
- Bem! E como a minha tia Margarida já me convidou a ir passar duas semanas a casa dela, no Algarve, ainda vão ser melhores.
- Pois, a tua tia vive no Algarve...
Claramente não lhe apetecia conversar. Ele percebia-o pelo seu tom de voz, lamuriento e sumido. Só o fazia, a pobre coitada, para tentar ser simpática e disfarçar a tristeza que lhe transparecia nos olhos tristes e magoados.
E como uma névoa que lentamente se vai adensando, um sentimento de absurdo e de revolta se foi apossando do seu espírito. A cena que havia presenciado na véspera, a conversa com sua mãe, a infelicidade da Aninhas, e sobre tudo isso a figura de Bento Perdigão, pairando como uma hedionda ave negra, tudo lhe pareceu desconexo, ilógico, peças de um puzzle que ele não conseguia arrumar mas, o que era pior, não suportava ver desarrumadas.
E então, de forma tão irreflectida que ele próprio se surpreendeu, disse-lhe:
-Aninhas, ontem vi o Aurélio.
-Sim? Onde? - respondeu-lhe ela, laconicamente, num fio de voz tão ténue que era quase imperceptível.
-Vi-o ontem de manhã, junto à ribeira!
Ela ergueu a cabeça num gesto brusco, subitamente interessada.
-E também te vi a ti!
-E também me viste a mim?
-Aninhas, por que não casas com o Aurélio?
Viu-lhe o peito estremecer e grandes e copiosas lágrimas lhe despontaram dos olhos.
-Deixa-me, vai-te embora! Que sabes tu da vida? Deixa-me... - e as lágrimas deslizavam-lhe pela face, quase sem soluços.
Sentiu-se sem palavras e com um profundo sentimento de culpa por ter causado aquele tão lacrimoso transe. Mas quem o mandara meter-se na vida alheia? Afinal que tinha ele a ver com os amores e desamores dos outros, que tinha ele a ver com esse mundo adulto tão cheio de absurdos e incompreensões? E saiu rua fora revoltado contra si, contra a Aninhas, contra o Aurélio, contra tudo, contra todos.





Umas mãos, num gesto terno e suave, taparam-lhe os olhos. Aspirou lentamente o aroma que das mãos e do corpo se desprendia. Era o mesmo perfume que havia sentido, no dia anterior, na loja da Aninhas.
-Aninhas! - disse.
Ela soltou-o e virou-o para si.
-Como sabias que era eu? - perguntou-lhe risonha.
-Adivinhei!
-Tu adivinhas e vês demasiadas coisas!
E olhavam-se e sorriam um para o outro, num sorriso amigo e cúmplice.
Ela baixou-se e colocando-lhe as mãos sobre os ombros fitou-o, olhos nos olhos:
-Aquilo que tu viste é um segredo que fica entre nós, não é? Ou já contaste a alguém? - perguntou-lhe num tom meigo mas onde se notava também alguma apreensão e súplica.
-Não, não contei a ninguém!
-Nem vais contar, pois não?
-Não, não vou contar a ninguém! - disse-lhe, erguendo a cabeça num gesto resoluto e categórico.
Ela passou-lhe a mão pelo rosto, numa suave carícia de agradecimento, rindo mais os olhos do que o rosto, uns olhos de onde haviam quase desaparecido as trevas magoadas e a angústia que tanto o haviam impressionado no dia anterior.
-Não conto a ninguém mas tu prometes-me uma coisa. Se tiveres um menino ele há-de chamar-se Aurélio!
Ela riu-se, num riso prazenteiro e surpreso.
-Ora, que ideia a tua!?
-Prometes?
-Prometo! - disse-lhe num ar subitamente sério.
E ele soube que assim seria, no abraço forte e sentido que ela lhe deu.








Era sábado, não tinha aulas, e mesmo que tivesse, não deixaria nunca de comparecer ao baptizado do filho da Aninhas.
-Onde vais? - perguntou-lhe a mãe, estranhando vê-lo tão madrugador, ele que tanto gostava de ficar a preguiçar na cama nos fins de semana libertos dos trabalhos escolares.
-Vou ver o baptizado do filho da Aninhas!
-Mas alguém te convidou? Não sabes que a casamento e baptizado só vai quem é convidado?
-Ora mãe, vou só ver. Que mal tem?
E ali estava ele. Como se precisassem de o convidar para tal cerimónia, sim, a ele, que antes mesmo de o menino existir já estava convidado, ele que era o verdadeiro padrinho daquela criança pois, afinal, quem lhe pusera o nome?
A igreja encontrava-se repleta com os numerosos convidados. O templo até nem era muito grande mas, na verdade, os convivas eram muitos, pois Bento Perdigão queria que a cerimónia estivesse de acordo com os seus pergaminhos de homem influente e abastado e fosse digna do seu neto, o seu primeiro neto.
E o momento solene aconteceu. O velho Padre Anselmo, que já havia baptizado três ou quatro gerações de paroquianos, ergueu a concha nas suas mãos já trémulas, e pronunciou as palavras sacramentais:
-Aurélio, eu te baptizo em nome do Pai...
Respirou fundo. Sentiu-se subitamente reconciliado consigo e com o mundo. Até o Bento Perdigão, que olhava embevecido e com os olhos orvalhados o seu primeiro neto, que esbracejava e chorava incomodado com a água que sobre si derramavam, lhe parecia agora mais simpático.

 
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quinta-feira, abril 07, 2005
 
A TIA CLEMENTINA


Quando naquela manhã viu a bandeira de leilão colocada no edifício da Caixa Geral de Depósitos e lá entrou para verificar se alguma coisa lhe poderia interessar, mal ele imaginava que aqueles passos o iriam conduzir a uma das histórias mais desconcertantes que lhe haviam acontecido ao longo de toda a sua vida.
De há muito que era frequentador daquele tipo de leilões. Ourives de profissão, de ascendência nortenha como quase todos os ourives que na região se haviam estabelecido, alguns há já várias gerações, quase sempre encontrava naqueles leilões um ou outro lote de jóias que lhe propiciavam um bom negócio. Algumas daquelas jóias esconderiam decerto histórias pungentes, de desespero e angústia, teriam sido o último dos recursos a que se teria jogado mão num momento de absoluta necessidade, quando todas as solidariedades falharam e o anónimo penhorante se achou só perante a adversidade. Tinha ele plena consciência disso e era com alguma incomodidade que olhava os lucros de tal negócio. Mas se não fosse ele outro seria, e com este pensamento confortava a consciência.
Mas naquele dia julgou reconhecer uma de entre as jóias constantes de um lote. E a ser aquela que ele julgava, não fazia grande sentido ali se encontrar. Conhecia os proprietários e, tanto quanto sabia, não teriam atravessado nem estariam a atravessar um qualquer transe difícil que os obrigasse a empenharem-se e, o que é mais, a verem-se desapossados de uma jóia que, e ele bem o sabia, era uma jóia de família.
Insondável mistério! Resolveu telefonar a um dos membros da família com o qual tinha um relacionamento mais próximo, médico de profissão, há alguns anos ausente em Lisboa e que, porventura, lhe poderia esclarecer a tão misteriosa presença de tal jóia num leilão de penhores.
A surpresa foi total. Não fazia a menor ideia de como é que a jóia fora parar ao leilão. A mesma tinha desaparecido, é certo. Há já alguns anos que nem ele nem nenhum dos familiares sabiam do seu paradeiro, tinha levado um completo e inexplicável sumiço. Mas que aguardasse que nesse mesmo dia lhe telefonaria, que iria entretanto contactar outros familiares para deliberarem sobre como haveriam de proceder acerca da jóia.
E assim aconteceu. Poucas horas passadas telefonava-lhe. Que adquirisse o lote de jóias onde aquela se encontrava, era um favor que lhe fazia, e que lha vendesse. Que de forma alguma iria sair prejudicado do negócio. Mas se tal não lhe fosse possível que desde logo lho dissesse, que ele mesmo procuraria outra maneira de ficar com o lote, embora só a jóia de família lhe importasse.
O lote seria necessariamente caro. O investimento de capital seria sempre vultuoso e sê-lo-ia ainda mais se aparecesse alguém no leilão particularmente interessado em adquiri-lo e o disputasse em licitação pública, possibilidade sempre em aberto. As jóias que o compunham eram, algumas delas, de razoável idade, cuja estética estava já bem fora dos gostos mais recentes e, por isso, a sua venda seria sempre problemática e decerto morosa. Por outro lado aliavam à preciosidade própria da sua condição uma outra, adveniente, nalgumas delas, da sua idade: eram peças de colecção o que, se tornava mais problemática a sua venda, as apreciava bastante. Tudo isto perpassou de relance pela sua mente de negociante experimentado. Respondeu afirmativamente, iria tentar comprar o lote, com uma salvaguarda: se aparecesse alguém a licitá-lo por valores exorbitantes ele não poderia acompanhar esses valores. Que o compreendesse, mas por muito que prezasse a amizade e consideração que há anos lhe devotava era um negociante. Com certeza, nem ele aceitaria outra coisa, já lá diz o velho rifão "amigos, amigos, negócios à parte", mas que tudo haveria de correr pelo melhor e que decerto conseguiria adquirir o lote por um preço razoável. Seria pouco provável aparecer alguém particularmente interessado pelo mesmo. E que de uma coisa poderia estar certo, o preço pelo qual ele lhe compraria a jóia, há tanto desaparecida, seria sempre compensador, pois ele não iria regateá-lo. E que dentro de breves dias se deslocaria à província e então mais e melhor falariam sobre o assunto.


II


-Agradeço-lhe ter-se interessado e comprado a jóia. Há muitos anos já que desconhecíamos o seu paradeiro. E na verdade continuamos sem saber como é que ela foi parar ao leilão.
Encontravam-se ambos sentados à mesa do Café, bem na baixa da cidade e que, de há muitos anos a esta parte, era frequentado pela boa sociedade local, em exclusividade em tempos de antanho, mas agora partilhado com turistas, estudantes e muitos indígenas, na sua grande maioria gente sem linhagem. Os tempos tudo mudam e as classes médias, paulatina, tenazmente, iam subvertendo a ordem herdada dos velhos tempos. Começara por frequentá-lo, a instâncias do pai, que raramente lá havia posto os pés, pois era seu entendimento que assim o filho não somente granjeava estatuto como dos bons relacionamentos que ali se poderiam estabelecer resultariam bons negócios. Ademais a ourivesaria situava-se nas proximidades. E de frequentador arrivista tornara-o o tempo cliente assíduo e banal, não no sentido de trivial, sem importância, entenda-se, mas no sentido de que aquele há muito deixara de ser para si um espaço estranho, onde se sentia como convidado tolerado, onde se entra como quem entra em casa alheia, para ser um espaço onde entrava como em casa própria. Mas nem tudo havia mudado assim tão completamente. A geopolítica das mesas, quem se sentava com quem, contavam ainda muito a quem tivesse olhos para ver.
Era ainda cedo, pela manhã, e raros eram os clientes que se espalhavam pelas mesas.
-Mas porquê um interesse tão grande por tal jóia? - perguntou-lhe.
Eram contos largos. A jóia encontrava-se na posse da família há várias gerações, tantas que nem ele sabia bem. Segundo era tradição familiar, a mesma fora mandada fazer por um seu distante antepassado que fora oficial de marinha e que por bastos anos se ficara pelo Brasil, donde regressara com alguns proventos. Desde então a jóia passava de geração em geração, sendo sempre entregue à primogénita filha do primogénito, com todas as variantes que daí se possam deduzir. Por exemplo, a jóia tinha sido pertença de sua tia Clementina, que morrera solteira e sem filhos. Seguindo a tradição, seria agora pertença de sua irmã Catarina, a mais velha das irmãs nascidas de seu pai, por sua vez o mais velho dos irmãos logo a seguir à tia Clementina. Tanto quanto sabia o sistema tinha sempre funcionado bem. Eram afinal resquícios de costumes antigos que a família ainda conservava. Ou melhor, tal costume não seria hoje senão um fetichismo, uma caturrice de família a que todos se haviam habituado e a que ninguém parecia desejar pôr cobro. As instituições humanas, e a família é porventura a mais antiga dessas instituições, vivem também destes cerimoniais, destas práticas às vezes sem sentido mas que lhes acabam por dar alguma coesão, alguma unidade, e será talvez esse o seu sentido final. Quanto à jóia era bem verdade que a mesma era já tão fora de moda que ninguém hoje se atreveria a usá-la. Tanto quanto sabia a última vez que fora usada em público, e com grande contrariedade de seu avô, tinha sido numa récita do Liceu pela tia Clementina, à altura jovem estudante, quando representara um qualquer papel num dramalhão cuja acção decorria no século XIX. O avô tinha-se oposto por considerar tal atitude um desrespeito, mas a avó, que se pelava pelas artes cénicas, tinha conseguido demovê-lo. Dizia-se que também a tia Clementina era gaiteira, enquanto jovem. Ele conhecera-a já entrada em anos, azeda, sorumbática. Desgostos de amor? Dizia-se que sim, mas não é sempre isso que dizem dos solteirões inveterados? Mas se desgosto de amor houve a tia soubera manter o segredo bem aferrolhado, pois se se falava em desgosto de amor nunca ele ouvira, nem a ela nem a qualquer outro membro da família, uma referência concreta a qualquer desvalido pretendente.
A jóia, uma gargantilha, hoje só teria valor como adereço de época. De qualquer maneira não deixava de ser uma peça valiosa e que ele bem conhecia. Um gordo e pesado entrançado de fios de ouro donde pendia um medalhão cravejado de diamantes e águas marinhas. Apreçara-a há já quase trinta anos, quando a família, assustada com o curso dos acontecimentos políticos, resolvera pô-la a recato, juntamente com outras jóias, no cofre de um banco, não sem que antes as tivesse apreçado, encarregando-o a ele desse trabalho. Passada a comoção dos momentos que então se viveram, as jóias tinham retornado ao seio familiar e é a partir dessa altura que a gargantilha leva sumiço.
E já havia tentado saber como tal tinha acontecido?
Que já, mas na Caixa nada lhe puderam dizer, havia normas de serviço que impediam que se divulgasse a particulares o nome dos penhorantes. Que nem mesmo tendo invocado as circunstâncias particulares que rodeavam a jóia conseguira que lhe dissessem o que quer que fosse.
Mas talvez que se entregasse essa diligência às autoridades fosse mais bem sucedido, propôs-lhe.
Que também já havia pensado nisso.
Pois porque não fazê-lo? Ele tinha um muito bom relacionamento com o comissário local da polícia e poderia dar-lhe uma palavra nesse sentido ou, se assim o entendesse, poderia acompanhá-lo nessa diligência e irem ambos falar com o dito comissário. Assim se combinou e assim se fez.


III


Vivamente interessado pelo decurso das investigações o médico demorava-se na cidade. Foram estas breves e inconclusivas, como naquele dia lhe contou. Encontravam-se de novo no Café, como já vinha sendo hábito, onde manhã, pelo cedo, ambos se deslocavam a tomar a costumeira bica.
-Então, ao certo, o que é que o nosso comissário apurou de concreto?
Que já se sabia quem tinha penhorado a jóia mas o mistério do seu desaparecimento persistia. Um jovem da terra, toxicodependente, indicado pelos responsáveis da Caixa como tendo sido o penhorante, instado pelo comissário a dizer como é que a jóia lhe tinha ido parar às mãos respondera que a havia encontrado em casa do pai, com quem vivia e que tinha falecido meses atrás. Tanto quanto o comissário apurou, o dito jovem já tinha vendido praticamente todos os trastes que o pai lhe deixara. Diria o rapaz a verdade? Muito provavelmente. Havia então que aceitar os factos tal como eles eram e que nessa mesma tarde regressaria à capital, onde o esperava muito trabalho.


IV


-Já sabe que o tal jovem que penhorou a jóia do seu amigo foi encontrado morto em casa? - cedo, encontrava-se no Café para a matinal bica, e o comissário Mendonça, também costumeiro naquele hábito, acercara-se da sua mesa para lhe dar tal notícia.
-Sente-se, sente-se, comissário! Então como é que isso foi?
-Foi "overdose", segundo o resultado da autópsia. Nos dois últimos meses já é o segundo caso verificado no concelho. Uma desgraça, meu amigo, uma desgraça. Foram os vizinhos que alertados pelos uivos do cão, fechado dentro de casa, e que parecia ser o seu único amigo, e depois de muito terem batido à porta nos alertaram, alarmados.
O pensamento fugiu-lhe para os dois filhos menores. Esteve vai-não-vai para perguntar ao comissário se a polícia fazia tudo o que estava ao seu alcance para combater a praga que, como uma maldição bíblica, alastrara até à mais recôndita aldeia. Ele sabia de casos dramáticos aos quais mais este se vinha juntar, tanto mais dramáticos para si quanto ocorridos com gente que ele perfeitamente conhecia. E quem não conhecia tais casos? Acaso não os conhecia a polícia melhor do que ele? Acaso não os conheciam todas as restantes autoridades?
O comissário pareceu ler-lhe os pensamentos.
-A polícia faz o que pode, meu amigo, a polícia faz o que pode...
Talvez. Mas será que todos faziam? Decidiu encaminhar a conversa num outro sentido, pois aquele não parecia ser grato nem a um nem a outro.
-Agora jamais se saberá como é que a tal jóia lhe foi parar às mãos.
-Nestas coisas não existe a palavra jamais. Talvez não saiba, mas ele há casos que só são descobertos muitos anos depois e quase sempre por mero acaso. Talvez que um dia se saiba como é que a jóia desapareceu e depois reapareceu nas mãos do rapaz. Talvez que ele me tenha falado verdade e nesse caso haveria era que saber como é que a jóia fora parar às mãos de seu pai. Sabe que o pai era o coveiro aqui do cemitério?
Que não, não sabia.
-Pois era. E sempre lhe vou contar uma história ocorrida aqui perto, há muitos anos atrás, tantos que nenhum de nós ainda era nascido. Esta história ouvi-a eu a meu pai. Pois aconteceu que uma jovem, filha de gente de posses, adoece e morre com tuberculose, uma doença fatídica nessa época e que ceifou famílias inteiras. Quando se procede ao enterramento da jovem não lhe conseguem tirar um anel que ela tinha, pois o cadáver havia como que inchado. Poderiam ter-lho cortado mas, fosse lá pelo que fosse, esses pormenores não me contou o meu pai ou me contou e eu já me não lembro, a defunta foi enterrada com o anel. Passados dias começa a soar que o coveiro tinha pretendido vender um anel na vila. Pobre como era, a origem do anel levantou suspeitas e não tarda eis que o coveiro cai nas mãos das autoridades. Sabedores da história e pela descrição que lhes fazem do anel os pais da dita jovem suspeitam que fosse aquele com que sua filha havia sido enterrada. Para se tirarem de cuidados comparecem no posto da autoridade e identificam o dito anel como sendo aquele que sua filha havia levado para a cova. O que tinha acontecido? Muito simplesmente o coveiro, sabedor do pormenor do anel, tinha desenterrado o cadáver e tinha-se apoderado do anel. Macabro, não é verdade? Pois aconteceu exactamente assim como acabo de lhe contar
-Seria possível que a dona Clementina tivesse sido enterrada com a jóia e o coveiro se viesse depois a apropriar dela? Não, não é possível. Não é possível porque se trata de uma jóia que a família tinha e tem em grande estimação. Nunca o cadáver seria enterrado com a jóia. Não sei se conhece a história...
-Conheço, conheço, contou-ma o seu amigo quando procedi a algumas averiguações, como sabe. Mas talvez não fosse de todo descabido contar-lhe você mesmo esta história, um dia que calhe a estar com ele. Talvez que ela lhe possa recordar alguma coisa que permita esclarecer todo este mistério.
E por mais algum tempo se quedaram tagarelando de coisas e loisas, dos roubos dos túmulos dos faraós egípcios e do tempo que não vinha propício para as fainas agrícolas, tema que importava particularmente ao ourives, proprietário que era de umas courelas herdadas e que ele, recentemente, havia ampliado com uma compra que reputava de boa. E era aqui notória a prosápia com que ele se referia à sua condição de lavrador, pois a terra era na região, desde o tempo dos afonsinos, a principal fonte de poder e riqueza e ainda hoje se não havia esmaecido de todo esse estadão, por isso que importava ao comerciante, como a qualquer outro burguês, dourar a sua condição social com o penacho de proprietário, modesto embora no seu dizer, e ao comissário, que não possuía terras, também não era de todo indiferente o tema, pois que opinar sobre a lavoura fazia-o participar desse mundo, dessa ruralidade ancestral que teimava em persistir, que tudo impregnava de uma aura pagã que unia e dividia amos e servos, agora como no passado fonte de conflitos sociais e insanáveis ódios, que de tempos a tempos ressurgiam, brutais, telúricos , mas também alfobre de cultura que a todos amarrava num comum sentimento de pertença a essa terra por vezes avara, por vezes úbere, que tudo dava mas tudo finalmente cobrava no pó em que transformava a vida, retorno inexorável que a todos condenava. Mas quando a conversa descambou para as políticas locais o comissário decidiu que era chegada a altura de bater em retirada. Como autoridade local dizia-se isento e independente e abstinha-se escrupulosamente de manifestar qualquer opinião, por inocente que fosse, sobre as intrigas citadinas. Ao nosso ourives é que parecia excessiva tal prosápia do polícia, pois que também ele era cidadão. Mas se o comissário a alguém manifestava as suas opiniões não era com certeza a ele, e isto deixava-o um tanto exasperado, vendo aí diminuída a amizade e a camaradagem que as andanças em pescarias e petisqueiras haviam de há algum tempo forjado.


V


-Pois está descoberto o imbróglio. Que história, meu amigo, que história...
-Mas como é que descobriu...
-Não fui eu, pois aí é que está, foi a minha irmã Catarina!
-Mas então como é que foi?
-Calma, vou contar-lhe tudo de princípio, mas já agora deixe chegar o nosso amigo comissário para eu não ter que me repetir.
O comissário empurrava já a porta giratória do Café, vindo da rua. O médico havia-os convocado para aquela reunião alguns minutos antes, dizendo ter grandes notícias a dar-lhes, deixando trair na voz alguma comoção. Deixara apressadamente o balcão da ourivesaria guloso da história que prometia.
-Sente-se, comissário, sente-se! Saiba que o senhor é em parte responsável pelo deslindar da meada. Pois quem afinal descobriu todo este mistério foi a minha irmã Catarina. Mas vamos lá começar pelo princípio, que é por onde se deve começar. Havia em casa de meus avós uma criada, a Luísa, que eu, desde as minhas mais remotas memórias, sempre lá conheci. Quando os meus avós faleceram a Luísa lá continuou em casa, com a minha tia Clementina, tinham as duas mais ou menos a mesma idade. Quando a Luísa foi lá para casa era ainda moça e pode dizer-se que a minha tia e ela se fizeram mulheres e envelheceram juntas, as duas eternas solteiras. Esta convivência de anos criou entre elas uma intimidade profunda, cheia de segredos, confidências e cumplicidades. Acabaram por criar um mundo só delas onde não permitiam que ninguém penetrasse. Após a morte de meus avós ainda viveram as duas largos anos, sozinhas, naquela casa que havia albergado tanta gente e agora era demasiado grande para elas.
-Pois a Luísa sobreviveu à minha tia Clementina. Ainda é viva, encontra-se num lar que nós, a família, lhe arranjámos e lhe pagamos. A Luísa tornou-se, a bem dizer, como que mais um membro da família. Sempre que a minha irmã Catarina aqui vem não deixa de visitá-la. Foi ela que a criou desde praticamente o momento em que nasceu. Ora a história que o comissário lhe contou e que o meu amigo depois me contou, contei-a eu a minha irmã Catarina que logo ficou com a pulga no ouvido. É que, e ela recordava-se disso bastante bem, foi logo após o falecimento da tia Clementina que a jóia levou completo sumiço.
-Quando aqui esteve, na semana passada, a minha irmã visitou a Luísa e interrogou-a sobre o desaparecimento da jóia e o seu súbito reaparecimento, coisa que ela desconhecia. E é então que a Luísa, lavada em lágrimas, lhe conta o sucedido.
-A minha irmã Catarina, à altura do 25 de Abril, frequentava a Universidade em Lisboa. Namorava então aquele que é hoje o seu marido e militavam ambos na extrema esquerda. Dizia ela então que havia feito a sua opção de classe, coisa que punha a tia Clementina completamente fora de si. Meus pais, mais compreensivos, encaravam a coisa mais como um devaneio juvenil que com o tempo iria passar, mas a tia Clementina sempre se mostrou intransigente para com aquela sobrinha que ela preferia a todos os outros. Quando as coisas serenaram e apesar de minha irmã, depois de ter vivido alguns anos com o meu cunhado, ter finalmente e burguesmente casado com o mesmo, pondo assim fim à eterna ladainha da tia Clementina, nem então esta lhe perdoou de todo. E quando sentiu o fim próximo obrigou a Luísa, sob juramento, a que lhe colocasse junto do corpo a gargantilha para que ela não fosse parar jamais às mãos de minha irmã e que nunca, mas nunca, contasse o que quer que fosse sobre o assunto.
-E porque contou agora? - interrompeu o comissário com um sorriso de satisfação na face, pois não fora graças à sua história, há tantos anos ocorrida, que todo este mistério se deslindara?
-Já que a gargantilha tinha reaparecido, e estava agora nas mãos de minha irmã, a Luísa sentiu-se desobrigada do juramento que havia feito a minha tia e por isso lhe contou tudo.
-Mas como é que a gargantilha foi parar às mãos do coveiro, não me diz?- perguntou o ourives, ainda meio incrédulo com tão fantástica história.
-Pois meu amigo, a tia Clementina, por sua expressa vontade, foi enterrada em campa rasa. Passados os anos devidos, procedeu-se à inumação das ossadas que foram trasladadas para o jazigo de família. Foi decerto nessa altura que o coveiro descobriu e se apoderou da gargantilha, que veio a guardar em sua casa e que, por fim, o filho penhorou. Aí tem.
-Traga-me uma aguardente. - pediu o ourives ao empregado que passava.
-Mas você não bebe?! - exclamou o comissário.
-Às vezes, como agora, apetece-me! - respondeu-lhe.
-Traga-me também uma para mim! - disse alto o comissário ao empregado que se afastava.
-Eu também quero uma! - quase gritou o médico, com um riso que contagiou os restantes.
 
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FÉRIAS BRIOSAS


I


O outro olhava-o com um ar de troça e comiseração e ele bem o entendia: "Eu não lhe dizia? Eu não lhe dizia que isto havia de acabar assim?"
Coçava a nuca, com um ar desalentado. De facto, não tinha mais argumentos. Mas perante o sorriso triunfal do tunante, que superiormente o fitava, encheu-se de brios uma última vez:
-Digo-lhe que se torna a acontecer isto não fica assim! Sei muito bem a quem me hei-de dirigir!
-Como queirra, meu amigo, como queirra! - respondeu-lhe no seu característico arrastar de erres.
"Calma, calma! Não seria por isto que haveria de ficar com as férias estragadas. Não andava a sonhar com a quinzena de praia mal o Natal se despedia e entrava o Ano Novo, para se deixar enredar em questiúnculas menores. Mas que tudo isto lhe havia feito chegar a mostarda ao nariz, havia. Então não querem lá ver? Levanta-se um homem pela manhã e depara-se com um espectáculo daqueles mesmo, mesmo à porta da tenda? E com a mulher e as crianças a dormirem lá dentro? Uma pouca vergonha daquelas logo ao romper da manhã, ali, em pleno parque de campismo? Levantava-se sempre cedo, ficara-lhe o hábito desde menino, nado e criado até tarde no campo. Talvez por isso lhe agradasse tanto o campismo. Mas para começo de dia não estava mal, não senhor. Está o mundo bonito! Que a França é um país de costumes mais liberais do que o nosso é verdade. E que cada um faça em sua casa, ou no seu país, aquilo que muito bem entender, sem incomodar os outros, aceita-se. Mas ele conhecia a França, já por lá tinha estado, e mais do que uma vez, de férias, em casa de um cunhado que há bem mais de vinte anos se havia estabelecido na cidade de Tours e por lá havia constituído família, e nunca tal se lhe deparara em plena via pública, nem lhe constava que o fizessem. Nem em França nem em parte alguma do Mundo. Esta era demais!
O outro, o recepcionista, bem que o tinha avisado: "Nós chamamos cá o monitor mas desde já lhe digo que de pouco vai adiantar. O meu amigo não sabe mas esta gente, quando se desloca para outro país, prepara a coisa a sério e inclusivamente informam-se sobre as leis desse país. Vai dizer-lhe que eles estavam na rua a ter relações e ele vai dizer-lhe o contrário. Verá se não é como eu lhe digo." Mas se ele havia visto o casalinho a fazer o serviço, como é que o outro lhe ia dizer que não? E disse-lho. Mas calma, calma é que era preciso. Se aquilo não se repetisse mais, mesmo ali à porta da sua tenda, até que fosse lá longe, à porta de outro, isso bem lhe importava, que se importasse o outro. Mas à porta da sua tenda, não! Ele o que queria era gozar as suas férias, pacatas, com os amigos de há longos anos, alguns desde que para ali começara a ir a banhos, ainda solteiro, jogar uma suecada pelo fresco da tarde com os parceiros habituais e beber o seu whisky, ah, é verdade, hoje era ele que deveria levar a garrafa, possivelmente teria que comprar outra, a que tinha talvez não chegasse, enfim, não lhe amolassem o juízo, não o incomodassem que ele também não incomodava ninguém. Mas andarem a fornicar ali à porta da sua tenda isso nem pensar.
"Mas o senhorr viu se o pénis estava intrroduzido na vagina?" Não, não tinha visto, e nem era preciso. A não ser que fosse debruçar-se sobre o casal, para espreitar. Olha que pergunta. Nem era preciso ver tal coisa para saber o que é que estavam a fazer." Mas viu ou não viu?" Não, já tinha dito que não. "Pois então se não viu como é que pode afirrmarr que estavam a terr rrelações?" E com esta argumentação do outro tinha-se deixado enrolar.
Haviam chegado de véspera. Gente jovem, de algum colégio francês. Já se sabe o que é gente moça. Ele também já tinha passado por essa idade. Férias, longe dos olhares paternos, eles e elas juntos dias a fio, dormindo ao lado uns dos outros, o que é que se espera? Que aproveitassem enquanto tinham idade para isso. Mas que diabo, bem que podiam ser mais discretos."
E neste discorrer chegou junto da sua tenda, já a família o aguardava para irem para a praia.
-Por onde andaste que nem o pequeno almoço ainda tomaste? - perguntou-lhe a mulher.
Que tinha encontrado uns amigos que já não via há muito tempo e com os quais se tinha entretido a conversar, respondeu-lhe. Não lhe diria nada por enquanto, se é que lhe diria. Já sabia que ela não iria aprovar a sua atitude. Até lhe parecia que já a estava a ouvir: "Aí andas tu a querer endireitar o mundo!"


II


Sentia-se particularmente bem disposto. Vinha do habitual jogo de cartas com os amigos, cujo convívio sempre o dispunha bem, particularmente quando o jogo lhe corria a favor, como era o caso naquele dia. Era Verão, estava de férias na praia das suas preferências, tinha junto de si a família e o incidente da manhã era assunto para esquecer. Tudo lhe parecia perfeito. Bem, nem tudo.
Ao fundo da rua do parque, por entre os pinheiros, divisou a figura do monitor dos jovens franceses! Só agora notava, com alguma surpresa, que se tinham ambos entendido, pela manhã, em português. Mas onde raio teria ele aprendido a falar português? Melindrado que estava com o acontecido nem tinha reparado nesse pormenor. Bem, também há muitos portugueses que falam francês. Ele é que não iria perguntar-lho. Quanto menos conversas tivesse com o passarão melhor. Pensou em mudar de direcção e desse modo evitar cruzar-se com ele. Mas o outro também já o tinha avistado e estavam agora demasiado próximos, tão próximos que esse gesto já não poderia deixar de ser ostensivo e até o espertalhão considerar que ele agia assim por despeito ou cobardia. Divisava-lhe agora bem as feições e apercebeu-se de que trazia estampado no rosto o mesmo sorriso velhaco com que o tinha deixado pela manhã. O tipo queria desfrute. Pois bem, passaria por ele e se o cumprimentasse nem lhe responderia!
-Português, paneleiro! - disse-lhe, ao cruzarem-se.
Ficou estupefacto. Quando quis reagir já o outro se tinha afastado tanto que, para se fazer ouvir, ou gritava ou ia no encalço dele, em passo acelerado. Para graça era pesada, já que não existia entre ambos qualquer intimidade que justificasse ditos de tal espécie. E até mesmo entre amigos tais liberdades haveriam de ser sempre ponderadas e adequadas a circunstâncias determinadas, por forma a não redundarem em ofensa. Se o outro o havia dito por graça pois não tinha graça nenhuma. Havia ali, por muito benévolo que tentasse ser, o propósito evidente de amesquinhar e ofender. Ah, mas não ficaria sem resposta. Mas que resposta? Bem, quando o encontrasse teria que lhe dizer que não lhe admitia aquelas liberdades, que não tinham comido na mesma gamela e portanto cada um às suas. Não o iria procurar de propósito mas, quando o encontrasse, teria que dizer-lho.
-Homem, que cara é essa? - perguntou-lhe a mulher quando chegou junto da tenda. Que não era nada, respondeu-lhe num resmungo. Mas todos estranharam o seu mutismo e o seu ar agastado durante o resto do dia.


III


-"Português, paneleiro! - ouviu ciciar junto a si.
Voltou-se repentinamente. Era ele de novo e que já se afastava dando-lhe costas. Encontrava-se na bicha da caixa do supermercado. Havia ali demasiada gente, não era local propício para armar rebuliço. Foda-se, tinha hesitado, tinha hesitado, mas agora já não havia remédio, ia-lhe meter um susto dos antigos. Já a tinha pensado mas considerou que o caso não era para tanto. Não era para tanto até àquele ponto. Nem ele sabia com quem se havia metido. Porque naquela noite tinha-se aconselhado com o travesseiro e havia decidido que o assunto não merecia o incómodo de se ocupar mais dele. Que se lixasse o francês. Que se lixasse desde que não repetisse a gracinha. Mas repetiu-a. E iria repeti-la porventura mais vezes se ele nada fizesse. Pois não a repetiria mais. Pagou e dirigiu-se para a saída.
-Homem, que cara é essa?
-Olá, Fonseca! Ando chateado.
Nem de propósito. Juntaria mais dois ou três amigos de confiança, convidariam o francês para beber um copo e tratariam de ter com ele uma conversa a sério. Repentinamente decidiu que teria que tratar do assunto sozinho, como o havia delineado naquela noite. Tinha sido ele o ofendido e os amigos nada tinham que se meter num assunto que era de todo pessoal.
-Eu depois te conto. Adeus!
Dirigiu-se para a tenda. Sentou-se, a fazer tempo.
-Pai, então não vais preparar-te para ires para a praia connosco? - que não, que não ia. Talvez mais tarde, que sentia uma leve dor de cabeça e preferia ficar ali a descansar um pouco à sombra.
Viu-os sumirem-se por entre os campistas que faziam caminho para a praia. Levantou-se e entrou na tenda. Abriu o saco dos apetrechos da pesca e lá bem do fundo tirou algo envolvido num pequeno saco de plástico negro. Era um pequeno revólver que já havia pertencido a seu pai, cabia-lhe bem na palma da mão, com a coronha trabalhada com incrustações de madrepérola. Já um coleccionador lhe tinha oferecido um dinheirão pela arma. Mas não a venderia, era objecto de família e além disso tinha tirado licença de uso e porte de arma para a poder utilizar, embora raramente o fizesse. Nas suas tarefas profissionais muitas vezes tinha que se deslocar em viagem com somas de alguma importância mas raramente se lembrava de levar consigo o revólver. Trouxera-o agora, e bem escondido o mantinha dos olhares dos garotos e da mulher. Trouxera-o porque uns amigos o tinham avisado, e ele sabia-o por experiência própria, que o parque já não era como dantes, quando tudo se deixava à mão de semear e ninguém mexia no que não fosse seu, quando reinava um são companheirismo entre todos e era tudo uma família. Mas tinha o revólver tão bem guardado que os eventuais ladrões teriam tempo de chegar ao Alentejo antes que ele o pudesse utilizar. Mas o tê-lo consigo dava-lhe uma certa segurança, mais fictícia que real, é certo. No fundo era tudo uma questão psicológica, dizia ele para consigo. Mas agora iria servir.
O outro ainda por ali andaria. Os jovens franceses eram pouco madrugadores, perdiam grande parte da noite nas discotecas da praia e levantavam-se já bem tarde. E o monitor, que sempre os acompanhava na ida ao banho, tinha forçosamente que esperar por eles. Era manter os olhos bem abertos e aguardar uma ocasião propícia. A espera não foi longa. Ei-lo que vinha em direcção às tendas armadas junto da sua, onde se encontravam os jovens, ainda deitados. Escondeu-se entre os pinheiros por forma a passar-lhe despercebido. Viu-o espreitar para dentro de uma das tendas e dizer qualquer coisa. Dirigia-se agora para os lavabos, a cem metros dali. Foi-lhe no encalço, guardando uma razoável distância. Quando lá chegou espreitou à porta e não estava mais ninguém, a não ser o francês. Olhou em volta e apercebeu-se de que ninguém se aproximava. A ocasião era a ideal. Entrou resoluto. O outro urinava num dos mictórios de parede. Aproximou-se dele e encostou-lhe o cano do revólver aos rins. Sentiu-o hirto:
-Se me tornas a chamar paneleiro meto-te cinco balas nos cornos. Ficas avisado!
O outro quedou-se mudo e imóvel. Ele recuou até à porta, com a arma já metida no bolso, não fosse aparecer alguém. Toda aquela cena teria durado escassos segundos mas nunca ele saberia dizer quanto tinham durado aqueles instantes.


IV


E se ele se tivesse voltado, como iria reagir? Fora um gesto temerário, fora mesmo uma loucura. Poder-se-ia ter desgraçado, a ele e à família. Ora ali estava uma história que nunca eles deveriam conhecer. No fundo, no fundo, nada daquilo merecia a pena. Mas, enfim, estava feito. E se o diabo do francês se tivesse voltado? Mas não se voltou, quando sentiu a pistola encostada aos rins ficou mijado. Esta ideia e a circunstância em que tudo tinha ocorrido fê-lo sorrir.
-De que é que estás a rir?- perguntou-lhe a mulher.
-De nada, estou cá a lembrar-me de uma coisa! - respondeu-lhe.
Estava agora plantado à beira-mar, de braços cruzados. Observava os filhos que brincavam na água e recriminava-se por aquela atitude absurda. Deixara-se levar por um sentimento de pundonor ferido. Que se lixasse o francês mais o seu atrevimento, era assim que deveria ter levado a coisa de princípio. Ou então conversava com o homem e punha o assunto em pratos limpos. Aquilo do revólver fora mesmo uma criancice. Mas estava feito e não tinha corrido mal. Bom, era o que se iria ver. Como é que ele iria reagir? Se tivesse juízo deixava-se estar quieto.
E passou a manhã nestas cogitações.
-Ala, meninos, são horas de almoço!
E lá seguiram para o parque carregando a habitual tralha.
Uma ideia agora o atormentava. Como iria reagir o francês quando ambos se defrontassem? Porque era inevitável não se encontrarem de novo, mesmo que o tentasse evitar. Mas não iria evitá-lo. Na verdade, se estava um tanto ou quanto temeroso pelo reencontro estava ao mesmo tempo ansioso por que ele se concretizasse. Como reagiria o homem?
O filho, que na brincadeira se havia adiantado com a irmã, voltava agora para trás, em correria, e ao passar disse-lhe:
-Pai, os franceses já cá não estão!
-O quê? - e a criança repetiu o dito.
Surpreso e descrente apressou o passo para o verificar com os próprios olhos. Já lá não estavam, não senhor. Tinham partido nessa manhã.
Partiram porque já assim estava decidido ou pelo que entretanto se tinha passado? Nunca o saberia mas o certo é que já lá não estavam.
Desatou então a rir, a rir, como há muito tempo não ria nem a família, que o olhava boquiaberta, se lembrava de tal ter visto.


 
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