LADRÃO POR ENCOMENDA
Lá vinha ele. Coado pela distância e pelo nevoeiro cerrado que tudo envolvia com o seu branco manto, já se fazia ouvir o ruído, ainda ténue, do motor do automóvel.
O homem era de hábitos sólidos. Todos os dias, fizesse chuva ou fizesse sol, manhã cedo, lá partia em visita aos seus domínios, tão certo como um relógio.
Bem sabia que ele era tão rico de bens como pobre de bondade. Mas ele há dias! E depois o homem havia de se lembrar que os seus pais haviam labutado para ele uma vida inteira a troco de mau passadio e muitas canseiras. E ele próprio também já para ele trabalhara, moço ainda, antes de ir para a tropa. E depois não lhe vinha pedir nada dado. Que ele depois lhe pagaria, pelas alminhas de seus pais. Até lhe pagava em trabalho, se isso fosse o ajustado. Mas agora ia tudo de mal a pior. Os cobres que ajuntara durante o Verão já se tinham ido, trabalho não havia, os fiados já eram muitos e aquela vida não podia continuar.
Bem... na verdade muito do dinheiro tinha sido gasto em copos e patuscadas. Mas também, que diabo, o que há-de um homem fazer? Sem companheira que o prenda, de alguma maneira um homem há-de matar o tempo. Mas ainda bem que não tinha arranjado mulher, mulher e filhos, senão era maior a desgraça.
Já tinha ido à Câmara pedir trabalho, qualquer trabalho, mas também aí lhe disseram que não tinham nada para lhe dar. Que só lá mais para a frente, para a Primavera, quando o tempo melhorasse. Começariam então com o arranjo das estradas e que nessa altura aparecesse. Era bom de dizer! E até lá como é que se iria governar?
O automóvel aproximava-se. O ruído do motor era agora mais nítido embora não o conseguisse ainda enxergar. O nevoeiro cerrado, que só levantaria lá mais para o meio da manhã, não deixava ver mais que um palmo adiante do nariz. E se ele não o visse? Com o nevoeiro que estava vá lá saber-se! Adiantou-se mais para o meio da estrada. Agora só se lhe passasse por cima. E daí a instantes ei-lo que surgia. Deu um salto repentino para a berma da estrada. Por pouco não era atropelado.
- Senhor Ildefonso! Eh senhor Ildefonso!
O carro guinou para o lado e parou poucos metros adiante.
- Tu queres que te matem? Com este nevoeiro e pões-te aí plantado no meio da estrada? - gritou-lhe, saindo do carro de forma brusca.
Aproximou-se. Passou a mão pelo cabelo e sentiu-a húmida das gotículas de água. Afinal já ali estava há um bom pedaço de tempo.
- É que pensei que não me visse!
- Que não te visse? Mas para que querias tu que eu te visse? Queres alguma coisa de mim?
- Quero... sim senhor! - tartamudeou, olhos no chão, as mãos contorcendo-se e agarrando-se num gesto nervoso.
- Então diz lá o que é, que eu tenho mais que fazer!
- Bem... sabe... senhor Ildefonso... os meus pais trabalharam para si uma vida inteira... e eu...
-E tu o quê? Não me faças perder tempo, diz lá o que queres!
-Encheu-se de coragem. Levantou a cabeça, fitou-o de frente, olhos nos olhos, e sem vacilar disse:
- Há algum tempo que não tenho trabalho, estou sem dinheiro e queria-lhe pedir algum emprestado!
O outro fitou-o, de olhos incrédulos.
- Querias o quê? Querias pedir-me algum dinheiro emprestado?
- Foi isso mesmo que eu disse!
- Com que então!? - cruzou os braços sobre o peito, descansando-os sobre a barriga proeminente, num gesto de desafio. - Com que então dinheiro emprestado! E depois como é que me pagavas?
- Sou um homem honesto, senhor Ildefonso. Em tendo pagava-lhe, pelas alminhas de meus pais que para si trabalharam uma vida inteira e nunca ficaram a dever nada a ninguém.
- Pois trabalharam e eu sempre lhes paguei o que era ajustado. E que eu saiba nunca pediram emprestado.
- Eu também nunca pedi! Mas uma vez é a primeira.
- Sabes que mais? Quem quer dinheiro emprestado vai ao banco. E um homem como tu devia ter vergonha de andar por aí a pedir emprestado aos outros. Um homem são e escorreito não precisa de pedir, trabalha!
- Mas é que eu não consigo arranjar trabalho. Já corri tudo e não consigo. O senhor Ildefonso sabe que eu não sou um homem preguiçoso.
- O que eu sei é que quando um homem quer trabalhar acaba sempre por lhe aparecer alguma coisa. E um homem, quando é homem, não pede. Não pede, ouviste? Se não tem nem que roube, mas pedir nunca!
- Roubar? Então você quer que eu me torne um ladrão?
- Tudo é preferível a pedir!
- Ladrão, eu? Então agora manda-me roubar? - e avançou um passo em direcção ao outro, os punhos cerrados, o cenho franzido de cólera.
Ildefonso, vendo-o assim de ar furibundo, meteu-se no carro, precipitado, e arrancou com grande estrépito.
Ficou-se especado no meio da estrada, murmurando consigo próprio.
Sentia um fogo intenso dentro de si, um calor que lhe provocava formigueiros nos dedos e o fazia abrir e fechar repetidas vezes as mãos, em gestos violentos de quem quer agarrar algo como se fora para estrangular.
Pagava-lhas, ah pagava-lhas com certeza! Não se chamasse ele Manuel António.
Regressou à vila em passo lento. O nevoeiro ia-se dissipando lentamente, como poalha soprada pelo vento. Gente passava, alguém o cumprimentou. Respondeu num resmungo.
*
Ao outro dia, ainda mal clareava, levantou-se. Vestiu-se com vagares. Lavou a cara numa bacia de esmalte. Olhou-se ao espelho do lavatório colocado a um canto da cozinha e repetidas vezes passou as mãos pela cara sentindo os pêlos rijos da barba de três dias. Logo a faria. Tinha agora coisas mais importantes a tratar. Aqueceu, no bico do gás, um pouco do café que lhe tinha ficado de véspera. Enquanto o sorvia em pausados goles olhava em volta. Casa pobre, desarrumada, naquele desleixo próprio de homem solteiro. Fora a única herança que seus pais lhe haviam deixado. Uma casa pobre, térrea, nos arrabaldes da vila. A casa e a espingarda, dependurada na parede, assente em dois pregos. A espingarda com que seu pai, caçador de se lhe tirar o chapéu, durante tantos anos atirara, sem respeito maior pelos períodos de caça que a lei mandava, e assim provera à mesa, pobre embora, mas bastas vezes alegrada com sua perdiz e seu coelho. Bons tempos esses.
Retirou a espingarda da parede e sentou-se com ela ao colo, afagando-a, de olhos perdidos no rememorar de antigas lembranças.
Levantou-se de súbito, decidido, abriu uma gaveta de um velho aparador de onde tirou dois cartuchos. Várias vezes os sopesou. Depositou-os depois, suavemente, no local de onde os havia retirado. Não, não necessitava dos cartuchos.
*
Ei-lo que aí vinha de novo. Sempre à mesma hora. Assim fosse ele tão certo na bondade como era nos hábitos.
Postou-se no meio da estrada de braços no ar. O dia estava límpido, daquela transparência própria dos dias de Inverno, os ares lavados pela chuvada que ao longo da noite caíra.
O carro estacou já a roçar-lhe o corpo. Tentava assustá-lo. Nem ele sabia com quem se tinha metido.
- Então o que é que temos hoje? Parece-me que ontem tínhamos ficado conversados. Se vens ao mesmo podes tirar o cavalo da chuva! - disse-lhe de dentro do automóvel.
Deu dois passos repentinos para a berma da estrada, agachou-se e da valeta retirou a espingarda, firme, resoluto.
- Saia do carro! - disse.
- Mas o que é que tu queres? - perguntou, os olhos abertos num espanto.
- Saia do carro, já disse! Tire as mãos do volante e saia do carro!
O outro obedeceu, com gestos custosos, a papada caída sobre o colarinho da camisa num treme-treme.
- Ouve lá, oh Manel António, eu cá não sou homem para brincadeiras dessas! - tentou, num falar calmo e conciliador que os olhos assustados traíam.
- Quem brincou ontem foi você! Isto hoje é a sério!
- Ouve lá, oh Manel António...
- Hoje até o meu nome sabe! Mas ontem mandou-me roubar! - retorquiu-lhe, sarcástico.
- Ouve lá, homem, isso são coisas que se dizem por dizer! Coisas que se dizem sem se sentirem! Não te queiras agora desonrar...
- Não é a gente que se quer desonrar. São vocês que nos obrigam! - interrompeu-o, abrupto. - P'ra cá a carteira!
- Mas tu 'tás maluco ou quê?
- P'ra cá a carteira, já disse! - e encostou-lhe o cano da espingarda ao peito. O outro recuou, atabalhoado, lívido, encostando-se ao carro. Bagas de suor começavam a perlar-lhe a testa.
- Vê bem no que te metes! - retorquiu-lhe, a voz sumida pelo susto.
- P'ra cá a carteira! - gritou-lhe.
Lentamente, com a respiração opressa, meteu a mão ao bolso interior do casaco e de lá tirou a carteira, a mão tremelicante.
Arrebatou-lha num gesto brusco.
- E agora o relógio! E os anéis!
O outro obedeceu-lhe, resignado, submisso, o beiço em ar de choro.
- E agora desande!
- Hás-de pagá-las! Hás-de pagá-las! - murmurava numa voz ciciada, medrosa, enquanto punha o carro em andamento.
*
Malandro. Tivesse ele menos vinte anos e até a espingarda lhe metia pelas goelas abaixo. Roubá-lo, assim, daquela maneira. Nenhum filho da puta se podia gabar de o ter assim achincalhado. Nenhum! Duma vez, na feira de Castro, há tantos anos já, dera ele boa conta de dois que o tentaram roubar. Mas era então outro homem! Fosse ele hoje o mesmo e outro galo cantaria.
Bom, mas a perda até nem havia sido grande. A carteira tinha pouco dinheiro, o pior eram os documentos, nem os documentos lhe tinha deixado, malandro dum cabrão. Denunciá-lo à guarda? Nem pensar! Quando aquela gentinha da vila soubesse toda a história o que não haviam de gozar. E havia por ali gente que se pelava por histórias assim. Nada, nem pensar...
Passeava-se dentro do escritório, jogando as pernas curtas em passadas coléricas, uma escuma de raiva assomando aos cantos da boca.
Bateram à porta.
- Entre!
- Oh patrão, trago-lhe aqui a sua carteira, o relógio e os anéis que me entregou o Manel António, o patrão há-de saber quem é!
- O Manel António! Sei lá quem é o Manel António! E isso não é meu! Afinal que história vem a ser essa? Ao Ildefonso ninguém rouba! Nenhum homem é capaz de o roubar, ouviste? - gritava, colérico, de olhos congestionados.
O outro recuou, medroso.
- Oh patrão, eu cá não sei se isto é ou não é roubado. Mas que isto é seu não tenho dúvidas. E depois o Manel António disse-me que tinha achado...
- Achou? Ele disse-te que achou isso? Ah bom! Deixa-me cá ver... pois, parece que sim...pois, é meu, é meu sim senhor!
- Mas como é que o patrão perdeu tudo assim? É esquisito...
- E a ti que te importa? Ora vai lá mas é trabalhar que é para isso que eu te pago! - e revolvia a carteira, de dedos sôfregos, verificando se o dinheiro estava certo. E estava.
Deixou-se cair pesadamente numa cadeira como se tivesse feito um esforço violento. Por várias vezes limpou o rosto molhado por pequenas gotículas de suor. Depois semicerrou os olhos e por largos minutos se quedou inerte, como que mergulhado em profundo sono. Levantou-se então, lentamente, entorpecido.
- Oh Inácio! Chamem-me lá o Inácio!
Ouviram-se rumores de vozes pela casa. Passados instantes ei-lo que surgia.
- Oh Inácio, leva lá este dinheiro ao Manel António. É a paga de me ter achado tudo isto.
E estendia-lhe algumas notas. O outro olhava-o, olhava o dinheiro, franzido, assarapantado. Este era um dia de prodígios.
- Pega lá no dinheiro! Pega lá no dinheiro e desaparece antes que eu me arrependa!
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