quinta-feira, abril 07, 2005
  A CASA MORTUÁRIA

A casa mortuária, a sua grande promessa de campanha eleitoral, tivera uma inauguração digna, ainda que sem os folguedos por ele pretendidos. Vozes avisadas haviam-no dissuadido de tal: não se inaugura uma casa mortuária, ou um jazigo, com música e foguetório, diziam-lhe. Mas essa inauguração, ainda que a seu gosto triste como o dia invernoso e morrinhento em que acontecera, abrira-lhe ainda mais o sorriso de bem-aventurança que trazia afivelado desde o dia da vitória eleitoral e ainda mais ufano e emproado se passeava desde então pelas ruas da aldeia, cumprimentando a esmo à esquerda e à direita, conhecidos e menos conhecidos, correligionários e adversários, vizinhos e forasteiros, como se ainda estivesse em campanha.
Batendo forte no empedrado da calçada com a bota de salto de prateleira, o que em nada favorecia a sua meã estatura, adornada com um bojudo ventre a que as muitas cervejas e um apetite voraz haviam abolado os contornos, era a imagem da suprema ventura ao passear-se, ao findar da tarde, pelas ruas do povoado. A cada passo tremelicavam-lhe as duas untuosas regueifas que lhe ocultavam o colarinho e com tal prosápia ele as procurava disfarçar, erguendo o intumescido pescoço, que a oposição, escarninha quanto só o sabe ser a maledicência aldeã, lhe havia posto a alcunha de o "peru", ou "pirun", para sermos fieis ao linguarejar provinciano.
Que a luta fora renhida e a vitória escassa, por isso tanto mais saborosa para uns quanto amarga para outros. Diziam os analistas locais, que para tudo os há e em todos os sítios, ter sido a vitória dos velhos, assim mesmo, que para aquelas bandas ainda não havia chegado a moda do politicamente correcto, contra a gente moça. Não andariam longe da verdade estes analistas, já que por ali a pirâmide etária se encontrava claramente invertida, com a persistente fuga dos jovens em busca de paragens onde encontrassem o ganha-pão e perspectivas de um futuro mais ridente. Por aquelas paragens ridente só mesmo o novel presidente da Junta de Freguesia.
Havemos de convir que uma casa mortuária não será tema que entusiasme a juventude, que o mesmo já não se poderá dizer dos idosos ao verem o seu fim tanto mais chegado quanto vão somando familiares e amigos desaparecidos. Mas há mais: é que este também era assunto que interessava a outros menos idosos e, muito particularmente, às mulheres, pois o caso é que defunto tem direito a velório e, conforme aos costumes ancestrais, este dura até que o cadáver seja transportado para o cemitério e soe o som cavo e lúgubre das pazadas de terra sobre a urna. E velório é coisa mais participada pelo elemento feminino, que os homens ficam cá por fora, na rua, e não tarda a que às recordações e elogios que o defunto suscita se sucedam as mais desvairadas conversas, com muito anedotário e risos contidos de permeio e até, se calha ser Inverno, com um ou outro bochecho em botija de aguardente que alguém sempre providencia, para acalentar os ossos e animar o espírito. E para muitos, não tarda, ala que se faz tarde a caminho de vale de lençóis. Por isso que o tema da casa mortuária interessava mais ao mulherio, que estoicamente suportava a maratona do velório, habituado que estava a uma vida de muito trabalho e sacrificadas esperas, falamos das idosas, bem entendido, que com a gente moça a história já é outra. Velório tão prolongado quer dizer noite perdida. E se assim há-de ser pois que se passe esse tempo com aqueles confortos, os mínimos que sejam, que a civilização nos soube proporcionar.
Que dantes os velórios se faziam em casa de cada um, mas as casas nunca têm condições para albergar muita gente, muita ou pouca, depende isso da importância do defunto, da qual por sua vez depende o tamanho da casa e por isso ou se poderá dizer que as casas são sempre pequenas ou que a gente é sempre demais, que as duas asserções estão correctas.
Nalgumas aldeias vizinhas já havia casas mortuárias, com bons cadeirões estofados, ar condicionado e até com instalações sanitárias, o que nem é demais, pois se ao morto já nada falta e tudo sobra, o velador continua amarrado à sua condição de ser vivente e às necessidades daí decorrentes. E se as aldeias vizinhas tinham casa mortuária, com todos os cómodos, por que não haveriam eles de ter também uma?
E o facto é que a promessa eleitoral da casa mortuária, pois campanha eleitoral sem promessas é como jardim sem flores, havia resultado em pleno.
Haviam-se proposto os adversários o arranjo do campo de futebol: piso melhorado e construção de balneários, para a equipa da casa, para a equipa visitante e para o trio de arbitragem. Além disso, também se haveriam de construir abrigos junto ao campo para que suplentes e equipa técnica assistissem aos jogos aconchegados dos caprichos do tempo. Tudo seria feito em tijolo e cimento, pintadas as paredes com as cores do clube, obra asseada cujo projecto até andara impresso nos papéis da propaganda eleitoral. Ora adeus! Os idosos eram mais do que os jovens e bem importavam àqueles a fortuna da equipa de futebol. E, contas feitas, no fim a casa mortuária ganhara ao desporto.
Mas a real, verdadeira inauguração da dita casa mortuária tardava. Meses haviam já decorrido e ninguém por ali se finava. A morte fazia a sua ronda habitual pelos povoados vizinhos, levando aqui um, além outro, mas parecia ter-se de todo esquecido da aldeia. E já, de forma irreflecida, o novo presidente da Junta, Manuel Catarino Fortunato era a sua graça, fizera notar tal facto, mais do que uma vez, em banais conversas de rua. Aconteceu o que era mais que provável que acontecesse; ao dar costas aos munícipes mais idosos, após muitos sorrisos e cerimoniosos cumprimentos, ficavam estes a fazer-lhe figas e a rogar-lhe pragas. Pois que lhes quisera os votos e agora lhes queria a vida. Abrenúncio, t'arrenego.
E passaram os meses de Inverno, por sinal de muitas chuvas e desacostumados frios, tempo propício a que a morte segasse com a sua foice entre os mais velhos. Mas estes, como que avelados, passaram a tormenta do tempo sem perdas e agora, quando já há longas semanas fazia vencimento uma prazenteira e calorosa Primavera, era de todo improvável que a autêntica inauguração da casa mortuária tivesse lugar nos tempos mais próximos. Para desespero de Manuel Catarino Fortunato e gáudio de toda a aldeia, pois já se tornara pública a causa do ar macambúzio com que por vezes o surpreendiam fitando a dita. Mas os motivos das suas preocupações não eram apenas o da longa inutilidade da sua obra; mais do que isso era agora o facto de o clube local estar em vias de se tornar, pela primeira vez, campeão da segunda divisão distrital de futebol. E ele, malquisto pelas gentes do desporto-rei, ele, a principal autoridade administrativa de toda a freguesia, via-se agora impedido de participar do vibrante entusiasmo que havia contagiado toda a aldeia, ele, que se queria à frente de todo o tipo de manifestação ou empreendimento que lhe granjeasse simpatia e aplauso, via-se agora compelido a assistir de longe à festa que os outros faziam.
Bem que tentara aproximar-se das gentes do futebol, mas fora mal recebido. Claramente lhe demonstraram que o não queriam ver participar das festividades. E até os seus correligionários o abandonavam, entusiasmados com a perspectiva do êxito futebolístico, misturados com a turbamulta, dessolidários de todo consigo. Abandonavam-no agora, quando fora ele que os levara à vitória, gastando na campanha dinheiro do seu, uma quantia calada que se em casa soubessem haveria decerto mosquitos por cordas. Esqueciam-se que fora ele que tornara possível o cumprimento da promessa eleitoral ao doar à Junta de Freguesia uma velha casa que possuía na aldeia e que havia comprado por bom preço, é verdade, com as primeiras economias que fizera na sua vida de emigrante. Mas nada o obrigava a tal, poderia muito bem tê-la transformado em casa de habitação e vendido por bom dinheiro. Esqueciam-se ainda de que dera, sim, dera, materiais para a construção, embora alguns tivessem querido metê-lo em embrulhadas com os tribunais, dizendo que os tinha vendido ao empreiteiro, quando afinal os havia dado. E ele mesmo se teria encarregado da sua construção, não fora os impedimentos legais. E se a tivesse construído, mais barata ainda teria ficado, porque disso sabia ele. Os muitos anos passados a labutar na construção civil lá pelas estranjas tinham-lhe dado para isso os ensinamentos precisos. Vendia agora materiais de construção, tinha um bom negócio, e em nada precisava da política para governar a sua vida. Se se metera em políticas fora apenas com o propósito de ser útil. Bem, verdade, verdadinha, ele gostava do reconhecimento alheio. Partira pobre, era então o Manel Catarino, regressara e era agora o senhor Fortunato. Até os amigos de escola se lhe dirigiam com alguma deferência. Tinha dinheiro, mas queria também a respeitabilidade e o estatuto a que se julgava com direito entre os seus paisanos. Ser presidente de Junta era uma via possível para aí chegar. E ele conseguira-o. Bem se importava agora que o chamassem de vaidoso. Vozes ditadas pelo despeito. E depois, presunção e água-benta cada um toma a que quer.
Até que nem lhe fora difícil chegar a Presidente da Junta. Começara por fazer constar, à boca pequena, que até nem se importava de ser ele o candidato. Depois soprara que a ser ele o candidato a campanha eleitoral seria feita a expensas suas. E não tardou que as forças da oposição mordessem o isco. Primeiro mandaram um peão de brega sondá-lo. Ele disse que sim e mais que talvez, que era preciso discutir bem o assunto e que estava disponível para futuras conversas. Vieram depois alguns elementos do estado-maior do Partido oposicionista, que como ele andava necessitado de granjear estatuto e peso político. Pareceu-lhes que a candidatura teria pernas para andar. Poder-se-ia ali ganhar mais uma Junta, mais uma flor para pôr na lapela e ainda por cima a custo zero.
Mas Manuel Catarino pusera condições: os homens que o acompanhassem na lista seriam inteiramente escolhidos por si e se acaso fosse eleito seria a Junta quem decidiria sobre quaisquer assuntos respeitantes à administração da Freguesia. Se a segunda condição fora facilmente aceite, já a primeira levantou amargos de boca aos partidocratas, sempre interessados em arranjar um lugarzinho, pequeno que seja, aos seus clientes. Manuel Catarino fora inflexível; ou seria assim ou nada feito. E depois de muita discussão, de muitos avanços e recuos, a condição fora aceite. Ele bem os entendia; de pouco lhes importava a sorte ou fortuna dos seus paisanos, mais importante do que isso era a conquista de mais uma Junta, era colocar ali a bandeira com a cor partidária. Os Partidos disputavam as eleições autárquicas como se de um jogo se tratasse, no qual os pontos ou os golos marcados eram representados pelas Câmaras e Juntas conquistadas. E ele isso não entendia: afinal o jogo político-partidário fazia esquecer aquilo que era deveras importante, as pessoas. E se em abono da verdade não eram de todo inocentes os seus propósitos políticos, também não seria de todo verdade dizer-se que lhe era indiferente a sorte dos seus conterrâneos.


II


A vitória naquele jogo equivalia à vitória no campeonato distrital da segunda divisão, o máximo galardão a que uma equipa com as dimensões da equipa local poderia aspirar. Disputava-se naquele Domingo a penúltima jornada do campeonato e com uma vantagem de quatro pontos sobre o segundo classificado parecia a todos impossível que o êxito final não estivesse de todo assegurado. E não estava. Mas todos se recusavam, naqueles dias, a acreditar que também ali pudesse ocorrer uma daquelas partidas cruéis que a vida por vezes nos prega, porque da vida se tratava, da vida colectiva, das aspirações comuns, da vaidade e prosápia de toda uma aldeia, de momentos de excitação e felicidade comunitária, da possibilidade de dar um pontapé, breve que fosse, nas agruras, nos desgostos, nas humilhações, nas incapacidades que cada um transportava consigo.
Por isso que naquele Domingo a aldeia marchou em peso para o campo da equipa adversária, o jogo era fora. Lá abalaram todos, em transporte próprio, à boleia, nos dois autocarros alugados pela Junta de Freguesia, sim , que depois de muito matutar sobre a forma de também ele poder participar na festa, Manuel Catarino achou aquela, simples, um autêntico ovo de Colombo, que os outros, os donos da bola e sua oposição política, não poderiam recusar. Olharam de soslaio, apoucaram, mas tiveram que engolir as duas camionetas. E Manuel Catarino, todo ufano, lá ia numa delas, misturado com o povo, dizia ele, demagogo e populista. A família deslocava-se no seu automóvel, com a filha ao volante.
E aquele foi um Domingo memorável na história da aldeia. A equipa não venceu, empatou, apesar dos porfiados esforços e do delirante apoio dos seus adeptos, pois os adversários bateram-se com denodo, dispostos a não facilitar e a vender cara a pele. Manuel Catarino, contagiado pela excitação e desejoso de dar nas vistas prometeu, ao intervalo, um chorudo prémio de jogo em caso de vitória. Não venceram, empataram, mas também os segundos classificados tinham empatado. Os jogos realizaram-se à mesma hora e aquilo foi sofrer a bom sofrer até ao apito final. E quando o jogo acabou aconteceu a inevitável invasão de campo com a autoridade a fazer vista grossa. Havia quem chorasse e havia quem tivesse agora às costas o pagamento das promessas feitas em hora de maior delírio clubístico.
Mas estavam em terra alheia. E numa pressa abalaram para a sua aldeia, a fazer a festa em sua casa, pois que acontecimento como aquele haveria de ser celebrado somente entre eles, sem o concurso de forasteiros, como se um egoísmo colectivo os houvesse a todos invadido e não lhes permitisse repartir a sua alegria com estranhos, ou seria talvez o ciúme de que outros também pudessem desfrutar da felicidade que os inundava. Seja lá pelo que seja o que é facto é que as festas de família celebramo-las em nossa casa e não em casa alheia. E aquela era uma festa da família aldeã.
E os folguedos decorreram noite fora. Já era madrugada quando soou a notícia de que José Sebastião da Cruz, presidente do clube local e anterior presidente da Junta de Freguesia, tinha sido acometido por uma apoplexia e, transportado de urgência para o Hospital da capital de distrito, já lá havia chegado cadáver. Era um homem rubicundo, hipertenso, a quem o coração já havia pregado algumas partidas. Vivesse ele noutras eras e a medicina de então decerto lhe aplicaria periódicas sangraduras. Hoje as medicações são outras e dizia-se que ele as aplicava com escrúpulo. Mas as comoções daquele dia extraordinário haviam sido excessivas para o seu frágil realejo.
A perplexidade, o sentimento amargo da transitoriedade da glória, a consciência acabrunhante do absurdo da existência, de todos se apossou. A festa havia acabado em tragédia.


III


-Era o que faltava. Depois de tudo aquilo que fizeram, ou melhor, que ele fez, pois foi ele o autor de todas aquelas calúnias, pois quem mais havia de ser?
-O tio não está a ver bem o problema. Essa atitude vai virar-se contra si!
-Não estou a ver bem o problema? Então esqueces-te que me quiseram pôr em tribunal, dizendo que eu tinha vendido materiais para a construção da casa mortuária, como se eu necessitasse disso para meu governo de vida? Desde que perderam as eleições que têm andado com velhacarias para ver se me complicam a vida. Pensavam que só eles é que conheciam as leis. Como se eu não soubesse que a lei não me permite meter a mão em qualquer obra promovida pela Junta. Velhacos, não passam de velhacos!
-O tio tem toda a razão, tem toda a razão desse ponto de vista. Mas isso não lhe permite impedir que o corpo vá agora para a casa mortuária. A casa mortuária é da Junta, tudo bem, mas é para ser utilizada pela população. Seja lá quem for o defunto todos têm direito a lá serem velados.
-Mas logo tinha que ser ele o primeiro. Logo tinha que ser o Zé Sebastião a estreá-la.
-A coisa seria grave se ele o soubesse. Mas tio, parece-me que colocá-lo na casa mortuária ou no meio da rua para ele já é indiferente. O tio não está a ver as coisas politicamente!
-Não estou a ver as coisas politicamente?! Então diz lá tu, tu que és o político!
Aquele era o seu sobrinho preferido. Andava a cursar Direito. Seria o primeiro da família a tirar um curso superior. Gostava dele como se fosse seu filho e quando dizia "o meu sobrinho Augusto", elevava sempre um pouco o tom de voz, tom em que se misturavam indistintamente o afecto e o orgulho. Quisera que ele integrasse a sua equipa para a Junta mas o rapaz recusara com o argumento, razoável, de que estava a maior parte do tempo ausente e que isso o iria impedir de participar de forma séria nos trabalhos da autarquia. Mas sempre que alguma questão mais difícil se lhe punha era ao sobrinho que recorria. E quando este soube que o tio se aprestava a impedir que o corpo de José Sebastião da Cruz fosse velado na nova casa mortuária, com o argumento de que a mesma se encontrava em obras, obras que eram apenas a instalação de um sistema de ar condicionado, logo se apressou a contactá-lo para o tentar impedir de tal propósito.
-As obras que estão a ser feitas na casa mortuária são obras menores que em nada impedem que lá se faça o velório. O tio sabe disso tão bem como eu, e toda a gente sabe que é assim. O que se irá dizer é que o tio é rancoroso. E sabe como o povo é, sabe como o povo guarda respeito aos seus mortos.
-Já sei, já sei que depois de mortos todos passam a ser boas pessoas. Mesmo que tenham sido uns pulhas em vida!
-Esqueça o passado e olhe em frente. Em que é que a morte do Zé Sebastião lhe poderá aproveitar?
-Em que é que me pode aproveitar? Olha, aproveita-me que é menos um caluniador que anda cá ao cimo da terra!
-Ouça, o homem era o presidente do clube de futebol, não era? O tio ganhou as eleições por uma unha negra porque muita desta gente é fanática da bola. A sua prioridade foi a construção de uma casa mortuária e com isso ganhou. Mas qual será a sua próxima prioridade, qual a grande obra que pretende realizar e com a qual ganhará votos? Está a ver qual é, não está? Pois há-de ser o melhoramento do parque desportivo da aldeia.
O sobrinho tinha razão.
-Há outras coisas mais importantes a fazer. Olha, o arranjo de algumas calçadas.
-O seu a seu tempo, tio. Daqui a pouco terão que ser convocadas eleições para a direcção do clube. Faça desde já constar qual será a próxima obra que se propõe realizar, candidate-se à direcção, prometa que irá auxiliar o clube e verá como ganha facilmente. E daí a ganhar a reeleição para a Junta são favas contadas.
O sobrinho tinha razão. Mas ele é que não lha poderia dar assim, de mão beijada, ele, homem maduro, experimentado pela vida, não se poderia dar assim por vencido, logo às primeiras. Os seus brios e a juventude do sobrinho impediam-lho.
-Daqui a pouco estás a propor-me que lhe envie flores!
-Não digo que seja o tio a enviar-lhas, mas porque não a Junta? Seria um gesto cortês. Afinal o homem foi presidente durante alguns anos e essa atitude cairia bem.
-Mas tu não tens orgulho? Estarás tu doido? Não vês que isso seria interpretado como uma atitude cínica da minha parte?
-Tomando em consideração aquilo que se passou entre ambos seria cínico, seria até ridículo, se o presidente da Junta enviasse um ramo de flores a felicitar o presidente do clube de futebol pela vitória no campeonato. Agora com o homem morto o caso muda completamente de figura.
-Queres então que eu mostre aquilo que não sou, que se pense que eu sinto aquilo que de facto não sinto?
-Estou só a dizer-lhe para que actue como político. Se assim não o quer entender, paciência!
-Mas isso não é ser político, é ser velhaco!
-Diria que é as duas coisas. Mas também foram velhacos para consigo quando tentaram entalá-lo com a questão dos materiais de construção.
-E queres então que eu combata a velhacaria com mais velhacaria?
-Quero apenas que o tio enfrente esta questão de uma forma política. Já lhe dei a minha opinião, agora o tio fará como melhor entender.
Subitamente calado, Manuel Catarino passava as mãos pelas faces nédias, num gesto nervoso. O sobrinho levantou-se.
-Já te vais embora?
-Vou, tio, penso que já lhe disse tudo o que tinha a dizer. Se quiser seguir os meus conselhos é bom apressar-se porque o corpo chega logo à tarde.
-Sabes o que vou fazer? Vou reunir a Junta!...Vou reunir a Junta!...
-Pois reúna, tio, e decida bem. Até logo.


lV


Toda a equipa de futebol estava presente e até fardada a rigor. Tal parecerá ridículo a olhos mais circunspectos, mas o entusiasmo pela recente conquista do campeonato não havia esmorecido, apenas se havia nublado de melancolia e toucado de redobrado afecto pelo defunto que atingira, pelo seu estado, o limbo dos consagrados. Todo o rancor, todo o azedume que alguns lhe houvessem devotado em vida deveria agora ser bem guardado, aferrolhado num recanto obscuro da memória. O luto assim o ordenava. E mais que o luto o evento desportivo, que outro não havia, de espécie alguma, mais importante nos anais da história aldeã. Fosse ele Inverno e decerto que os jogadores apareceriam em trajo mais próprio para enfrentar o barbeiro que, em tal sazão, quase sempre corre desenfreado pela vasta campina e, sem anteparo que o detenha, parece arreganhar ainda mais o dente quando assola a desnudada colina onde a aldeia se desdobra em ruas e ruelas. Mas era quase Verão e os jovens prestavam assim guarda de honra ao dirigente que, de forma tão trágica e efémera, havia provado o doce sabor da glória e, ao mesmo tempo, eram também eles, ocasionais heróis, alvos da adulação dos seus conterrâneos, ampliada pela cerimónia fúnebre, ocasião sempre propícia ao devaneio e à exaltação dos sentimentos de afecto e gratidão.
Também Manuel Fortunato se aliava ao préstito, de resto toda a aldeia ali se encontrava. A faltar algum só mesmo por impossibilidade física. Manuel Fortunato também depôs coroa de flores a juntar às muitas outras que, amontoadas, já sobrepujavam o féretro. Nela se lia, em fita com as cores do município, "A Junta de Freguesia". Apenas. Mas aquelas singelas palavras provocaram horas de discussão entre os elementos da Junta. Foi mesmo aquele pormenor o que mais celeuma levantou na reunião que se havia realizado naquela manhã. Foi aquela a fórmula encontrada para, de maneira condigna, mas sem concessões, homenagear o morto. Porque qualquer outra fórmula, tenuemente laudatória que fosse, deparava com a intransigente oposição de Manuel Fortunato.
Divisou o sobrinho Augusto,de pesarosa e solene gravata preta, à conversa com os dirigentes desportivos locais. Será que nem ali aquele seu sobrinho deixava em paz as tramóias da política?. Pois de que falaria ele afinal? Por fim acercou-se.
-Tio, depois do funeral vá ter ao clube da bola. Já tenho o assunto conversado.- disse-lhe, em voz ciciada, ao ouvido.
O rosto crispou-se-lhe e não respondeu.
A mulher, que o acompanhava de perto, perguntou-lhe:
-O que foi?
-Nada, é o Augusto que quer falar comigo depois do funeral.
Esta olhou-o, surpresa. Pela primeira vez ele não se havia referido ao sobrinho como "o meu sobrinho Augusto".

 
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