quinta-feira, abril 07, 2005
  O SANTO TROCADO

I


Francisco José Viegas de seu nome, mais conhecido pelo "Chico Manitas", era um homem singular. O apodo havia-o herdado de seu pai, o "Manuel Manitas", pastor uma vida inteira e as mãos mais habilidosas a trabalhar com um canivete que olhos humanos jamais tinham visto muitas léguas em redor: de uma raiz retorcida fazia um cachimbo, de um tanganho disforme fazia um cão, um borrego, um pastor, aquilo que muito bem lhe apetecesse, de um tronco de oliveira, laranjeira, limoeiro fazia colheres de pau com as mais variadas dimensões, decoradas com caprichosos arabescos, e de chavelhos fazia polvorinhos, azeitoneiras e galheteiros, alindados com não menos delicadas e fantasiosas figuras de bichos, dos existentes e de outros saídos da sua alquimia mental, que se não existiam agora talvez tivessem outrora existido, plantas, folhas, frutos e tudo o mais que a sua solitária imaginação era capaz de engendrar ao calcorrear, atrás do gado, a imensidão da campina despida de gentio ou até da fumarola de chaminé distante, vasta e solitária, tendo por limites a linha do horizonte para lá do qual ele só podia imaginar o que existiria por ouvir dizer, pois que esses horizontes foram, ao longo de toda a sua vida, as fronteiras que lhe balizaram a existência. Só, como num mar oceano, entre o céu e a terra, às vezes por dias seguidos, como não se lhe haviam de desatar naqueles ermos sem fim as asas de uma já de si fecunda e inventiva imaginação. E o filho havia-lhe herdado o jeito, que não a profissão, embora, criança ainda, acompanhasse o pai, em dias mais soalheiros, no pastoreio dos gados.
E foram talvez esses dias de contacto com os horizontes vastos que lhe marcaram o carácter, sempre avesso a compromissos de assalariado, a horários, a jornas a dez réis de mel coado e aos muitos salamaleques a que, ainda por cima, um homem se via obrigado para encontrar algum trabalho. E se manejava bem um canivete melhor manejaria uma faca de barbeiro. E foi no que se tornou. Era senhor de si próprio, os horários fazia-os ele e que chovesse, que ventasse, sempre estava debaixo de telha. Os horizontes sem fim, essa liberdade plena que só no campo soube encontrar não os perdera entre as quatro paredes da barbearia, procurava-os quando assim o entendia: o amor ao campo, as frescas brisas que, em fins de tarde de estiagem, livremente corriam a planície e lhe afagavam o rosto, as cores primaveris e até os ventos desabridos e as inclementes chuvadas das invernias prolongadas, como agora já não aconteciam, e que sempre associava ao conforto do braseiro de azinho e esteva a que se achegava, quando os pais ainda eram vivos e os irmãos todos ainda viviam debaixo do mesmo tecto, todas essas memórias não deixara que lhe esmorecessem no peito. Que outras tinha, menos agradáveis, aquelas da muita pobreza, da separação e da emigração a que os irmãos se viram compelidos. Mas preferia recordar as mais gratas, talvez não tão douradas quanto isso, mas um velho, quando recorda a meninice e a juventude recorda também o vigor, a esperança e a ilusão que o tempo foi levando, e por isso pinta sempre essas memórias com as cores risonhas daquela que foi a sua Primavera da vida.
Nas traseiras da barbearia, que era casa de uma só divisão, tinha montado, colada a esta, uma pequena oficina, um casebre com telhado de uma só água, onde se refugiava sempre que a clientela escasseava e se entregava à arte herdada de seu pai. Dali saíam não só as colheres de pau e os chavelhos trabalhados mas também figuras regionais, do passado é bom de ver, de ceifeiras e pastores, a quem a mulher ajudava a compor os trajos de lei. A produção vendia-a quase toda aos comerciantes de artigos regionais da cidade próxima e foi daí que começou a esculpir em madeira os ditos bonecos, pois que se vendiam tão bem que não chegavam para as encomendas. Renitente, a princípio, em submeter-se às leis do mercado, acabou por anuir já que o rendimento da barbearia sempre fora parco e agora era-o ainda mais, pois a juventude ou de todo nem o cabelo cortava ou se o fazia preferia as barbearias finas da cidade.
E tinha mesmo equipado a sua modesta oficina com algumas das ferramentas que o progresso engendrara. Se ainda utilizava o canivete para aqueles trabalhos mais delicados que só a perícia e o engenho do artista são capazes de concretizar, utilizava goivas, formões e quejandos e até um pequeno torno eléctrico, que muito jeito lhe fazia.
Ali passava os tempos mortos do ofício de barbeiro que ele, tantas vezes, desejava que se prolongassem quando mais ensimesmado se achava a trabalhar a madeira, até que algumas pancadas batidas na parede contígua da barbearia o vinham arrancar ao encantamento daquela que era a sua ocupação preferida. Como a oficina e a barbearia não tinham comunicação era daquela maneira que os clientes o chamavam a pegar nos outros apetrechos, aqueles de barbeiro.
E lá soaram as pancadas. Foi ver.
Era o João Venâncio, o único hortelão dos muitos que em tempos houve lá para os lados do Vale da Malhada Fria, terras úberes e que ressumavam água até em anos avaros de chuva. Aos poucos tinham ido desaparecendo, levados pela morte uns, ou por actividade mais lucrativa outros.
Os produtos hortícolas agora chegavam de longe, desenxabidos mas maquilhados de boas cores, conseguidas sabe-se lá como. E o pobre hortelão, que trabalhava como o seu longínquo antepassado mourisco, perecera ante a invasão da grande indústria e do grande comércio. Mas João Venâncio, por alcunha o João "Ouriço", devido à pelagem crespa e renitente ao pente que lhe cobria a cabeça, resistira.
Vendia os seus produtos no mercado semanal que se realizava na cidade próxima, cada sábado, e tinha os seus fregueses certos, pois que alguns ainda continuavam a preferir os produtos com cheiro e sabor a húmus, aquele cheiro e sabor que só a terra tratada com verdade é capaz de proporcionar.
Vinha ao barbeiro todas as sextas-feiras, já que se queria apresentável no mercado do dia seguinte. Trazia fome de conversa, pois que ele e a mulher pareciam entender-se por monossílabos, e uma insaciável sede de vinho, após uma semana de quase abstinência de ambas as coisas. Depois de muito palrar com mestre Chico "Manitas", conversa demorada como que a atiçar ainda mais a sede, abalava para a taberna do Raminhos onde apanhava monumentais carraspanas. Nesses dias vinha para a aldeia a pé para que a mulher, ao cair da tarde, o viesse buscar no pequeno tractor com que se auxiliavam nos trabalhos da horta. Estiraçado no reboque, de braços pendentes, lá ia invariavelmente cantando letras avulsas de fados, numa voz entaramelada e lacrimejante. Tinha feito tropa em Lisboa e por lá se ficara depois algum tempo, operário e boémio, até que a morte do pai, que sempre considerara a grande cidade um antro de vício e perdição e a cujos pedidos de regresso nunca atendera enquanto fora vivo, o chamara de vez para tomar posse dos poucos haveres que lhe tinha deixado. E desse tempo de boémia pobre lhe tinham ficado uma pungente saudade e um jeito fadista ao qual as suas raízes rurais, longe de depuradas, davam um ar histriónico para grande galhofa da malta que, sempre que o via avinhado, logo lhe puxava, com uma lisonja canalha, pela veia fadista.
-Sabe que andam para aí uns mafarricos a roubar os santos das igrejas?
-Você vive lá acoitado na sua horta, faz a barba de semana a semana e, rija como ela é, dá-me cabo das navalhas todas. Tenho que passar a cobrar-lhe mais caro do que ao resto da clientela, é o que é!
-Deixe-se lá de tretas. Não ouviu o que eu lhe disse?
-Ouvi, ouvi! E devo dizer-lhe que isso não me causa nenhuma admiração.
-Homessa, como é que não lhe causa nenhuma admiração?
-Não me causa nenhuma admiração porque hoje o pessoal já não tem medo aos santos. Medo ou respeito, o que para o caso dá o mesmo.
-Pois, o respeito já é pouco ou nenhum. Mas daí a roubarem os santos!?
-Roubam-nos porque é coisa que dá dinheiro. Não desse ele dinheiro e deixavam os santos em paz. Ou não sabe que depois os vendem por bom preço?
-E há por aí igrejas que estão muito abandonadas. Aquilo entra lá quem quer, de dia ou de noite.
-Pois há. Muito me admira como é que ainda não roubaram a capela de S. Luís, lá para o pé da sua horta. Já por lá não vive ninguém, a não ser você e a sua Bia Chica!
-Pois não! Mas aquilo é lugar tão ermo que ninguém lá chega. Bem pode o Santo estar descansado.
-Pois olhe que não sei, olhe que não sei!
João Venâncio fazia esgares de algum incómodo quando a navalha lhe passava pela cara, curtida de muitos sóis e geadas. E com alguma razão. Mestre "Manitas" usava com ele a mais embotada das navalhas para poupar as outras, já que o homem era de pêlo rijo.
Ao longe ouviu-se ganir um cão. João Venâncio, incomodado com um bote mais doloroso, diz-lhe:
-Oh mestre "Manitas", quer ver que também estão a fazer a barba àquele?


II


Mestre "Manitas" madrugara mais do que o costume. Ainda mal a manhã vinha rompendo da raia de Espanha e já ele ia montado na sua motorizada ronceira, lá para os lados da Malhada Velha. Resolvera que naquele dia haveria de comer um caldo de peixe da ribeira, e daí a sua visita tão madrugadora a um galrito que tinha armado na Ribeira Torta, não longe da horta do João Venâncio. De caminho avistou-o na rua do monte, cigarrando logo pela manhã. Acenou-lhe.
No galrito encontrou três barbos, nédios e lustrosos. Já tinha o caldo de peixe arranjado. De um saco de pano tirou uma boa mão-cheia de grãos cozidos que colocou no bojo da armadilha. Os barbos, forçados pela gulodice àquela acanhada prisão, decerto que por alguns dias, pois havia mais de uma semana que ele não a levantava, tinham tido tempo suficiente para devorar aqueles que lá tinha colocado. Voltou a ajustar a tampa de cortiça ao fundo do cesto e reforçou-a com um arame que cruzou sobre esta e prendeu solidamente às hastes de verga. Voltou a descer o galrito no negrume das águas até ele tocar o fundo, a uns dois metros. Prendeu a corda que o sustinha, com um nó dobrado, às raízes expostas pelas cheias de Inverno de um freixo que sombreava o sítio, em cujas hastes hirtas já despontava uma nova roupagem verde. De tal modo arranjou a atadura que quem viesse de caminho não a conseguiria ver. Estava-se em Abril e as águas da ribeira ainda fluíam com algum vigor a caminho do Guadiana próximo.
Olhou em volta e escondeu os barbos dentro de uma saca de serapilheira, após envolvê-los em ervas que colheu na margem e previamente molhou nas águas do pego. Assim sempre se conservavam mais frescos enquanto não chegasse a casa. O uso do galrito não era permitido e a época de pesca ao barbo só começaria lá para meados de Maio. Mestre "Manitas" cometia duas ilegalidades de uma assentada. Deixá-lo! Àquela hora da manhã as autoridades não iriam decerto incomodá-lo e a meia dúzia de barbos que ele comeria durante a época de defeso não iriam decerto fazer perigar a existência da espécie. Lembrou-se desta porque tinha visto na televisão, na noite anterior, um programa em que se falava da necessidade de limitar a captura de certas espécies de peixes, já que a sua pesca, feita de forma excessiva, podia provocar a sua extinção. Programa que falasse da Natureza não lhe falhava. Eram os seus preferidos.
Do local onde se encontrava avistava-se, a cerca de duzentos metros, no cimo de uma colina que suavemente subia a partir das margens da ribeira, a capela de S. Luís, templo singelo onde ele, em criança, se deslocava com os seus pais e irmãos à romaria que ali tinha lugar em Agosto e onde se procedia à bênção dos animais.
Naquele local juntavam-se romeiros vindos dos quatro pontos cardeais com os melhores exemplares dos seus gados, na impossibilidade de os trazerem todos. Chegados ao cair da tarde ali dormiam, aguardando a cerimónia religiosa que se realizava ao outro dia, pela manhã. Depois comia-se, bebia-se e dançava-se, regressando todos a Penates a meio da tarde, que para alguns a caminhada era longa e a chegada aconteceria já noite cerrada.
Mas eram aquelas noites da chegada que uma mais sentida saudade lhe deixavam: a multidão confusa e espessa de pessoas e gado, a apressada feitura de um aprisco para este, a procura de lenha pelas margens da ribeira já com o Sol a apagar-se no horizonte, a merenda que se comia sobre as camas preparadas com pastos e ervas tenras, o crepitar dos grandes lumaréus que iluminavam a noite como grandes tochas, o lento serenar do bulício e finalmente, o longo serão em redor do lume, com o sono a tardar, a tardar, pela excitação e pela curiosidade de ouvir as muitas histórias que uns e outros então se contavam, sentados aos magotes pelo chão, iluminados esparsamente pelas chamas súbitas. Histórias de bruxas, aparições e aventesmas e ele, com o coração muito pequenino, encostando-se às saias da mãe e ao aconchego do lume, temeroso até de fitar o escuro da noite, tão próximo que se lhe podia tocar esticando o braço, aquele escuro alforjado de mistérios e temores de que ele finalmente se protegia, já vencido pelo sono, escondendo a cabeça debaixo da grossa e pesada manta com que se tapava das branduras da noite.
Não sendo ele homem devoto, deixava a incumbência de solicitar os favores da divindade à mulher, tinha contudo aquele S. Luís de Tolosa em particular simpatia; enlevo da sua meninice, protector dos animais e que naquele local, como tantas vezes tinha ouvido contar, livrara el-rei D. Dinis de um transe difícil quando por ali caçava. Sendo acometido por um urso logo invocou o Santo, que ademais era primo de sua mulher, a Rainha Santa Isabel, embora Mestre "Manitas", que não era versado em genealogia e muito menos em hagiologia, desconhecesse este pormenor. E de tal modo o Santo lhe valeu, sabe-se lá se mais pela devoção ou mais pelo parentesco, que o Rei não só evitou a investida como matou a fera, apunhalando-a. E foi por mercê desse favor que no local mandou erguer a capela em seu perpétuo louvor e agradecimento.
É verdade que igual história se contava relativamente a outros locais onde se erguiam capelas dedicadas a S. Luís. Mas isso que importava? A história era tão bonita que não se poderia levar a mal que outros se quisessem dela apropriar.
Um ruído vindo dos lados da capela arrancou-o a estas cogitações. Firmando melhor a vista achou que era um automóvel que tinha estacado ao lado dela. Bem, era verdade que a capela recebia os seus raros visitantes. O João Venâncio possuía uma chave da dita e era ele que muitas vezes franqueava a entrada da mesma aos visitantes que, avisados, lha solicitavam. Mas lembrado da conversa que com aquele havia tido sobre os roubos de igrejas que agora se perpetravam na região, decidiu aproximar-se para melhor tirar a pinta a visitantes tão matinais. E para não parecer abelhudo, aproximou-se como que por acaso, debruçado sobre o solo, catando aqui e ali uma erva como se procurasse planta mais rara que lhe servisse de mezinha ou tempero. Os outros, que eram três, só tardiamente se aperceberam daquela improvável vizinhança em descampado tão ermo. Mas nestes entrementes viu mestre Chico "Manitas" que eles rodearam o edifício, fitando porta por onde entrassem e experimentando-lhe a solidez, que era pouca, quer a porta de entrada com seu arquinho gótico sobrepujado por uma alpendrada, quer uma porta lateral. Ao verem-no, precipitadamente se meteram na viatura e se fizeram ao caminho de terra batida.
Mestre "Manitas" não gostou da novidade. Haveria de ir contá-la ao João Venâncio, que lhe ficava de caminho.
Achou-o armando canas para o feijão. A mulher, sempre loquaz para as visitas, pois que aqueles dois seres que pareciam já ter conversado tudo o que tinham para conversar um com o outro, se derramavam em palavras para um qualquer fugaz visitante que lhes demandasse o solitário reino, depois que ouviu a história, também lhe pareceu que havia ali cheiro a esturro. E lá veio à baila a conversa que dias antes haviam tido na barbearia sobre os roubos cometidos em várias igrejas. E visitantes tão matinais não era usual e raros eram aqueles que não passavam pela horta a pedir os préstimos para a abertura da capela.
Foi aí que ocorreu a João Venâncio uma ideia, foi aí que ele fez uma revelação da qual só a sua mulher tinha conhecimento.
-Ouça lá, João Venâncio, e se trocássemos o Santo?
-Se trocássemos o Santo? - ele e a mulher olhavam-no com cara de quem duvidava da sua sanidade mental.
-Isso mesmo, podíamos trocar o Santo!
-Mas oh compadre "Manitas", o que é que se lhe meteu na cabeça?
Este olhava-os com um ar divertido, perante tanto pasmo e incredulidade.
-Eu explico. Sabem que eu não sou homem de igrejas mas também sabem que eu tenho cá um fraquinho por este Santo. E vai daí meteu-se-me na cabeça fazer um igual a este, que tenho guardado lá na minha casa. Para evitar dichotes e perguntas nunca o disse a ninguém, a não ser à minha mulher.
-Fez outro S. Luís igual àquele que ali está na capela?
-Pois fiz!
A admiração tinha sucedido ao pasmo incrédulo.
-Mas mesmo , mesmo igual?
-Bom, aquele que ali está é já bastante velho, o meu parece mais novo, e é mais novo, quero dizer, o aspecto. Mas pintei-o com as mesmas cores, e a feição e o tamanho estão tal e qual.
-Mas como é que você fez isso?
-Então!? Entrava ali na capela, também eu tenho uma chave que abre a porta, na verdade a fechadura está tão lassa que qualquer chave a abre, venho para aqui à pesca muitas vezes, como sabe, pois entrava na capela, mirava-o, tirava-lhe as medidas e lá o fui fazendo.
-Essa agora! Se fosse outro a contar-me eu não acreditava!
-Pois é verdade. Lá o tenho em casa, bem guardado.
Mestre Chico "Manitas" tinha feito, com paciente engenho, uma réplica exacta do S. Luís de Tolosa. De cores mais brilhantes, é verdade, sem a pátina que só o tempo traz, mas na obscuridade em que o interior da capela sempre se encontrava mergulhado, quem o iria notar?
Isto mesmo já havia magicado Bia Chica que, sem nada ainda ter dito, deixava transparecer no rosto uma alegria quase infantil, aquela alegria travessa que transparece do rosto do miúdo traquinas quando congemina alguma diabrura.
-Se os ladrões o vierem roubar o mais certo é virem de noite. No escuro sabem lá eles se é aquele o santo ou não é? - pensava ela em voz alta.
João "Ouriço" sentiu-se em minoria.
-Oh mulher, e onde é que ias pôr o outro, o verdadeiro?
Esta e mestre Chico "Manitas" olharam-se com ar de mútuo entendimento.
-Podíamos pô-lo aqui na sua horta! - alvitrou ele.
-Ah sim!? E se depois tudo se sabe quem é que se vê às aranhas com a justiça?
-Qual sabe, nem meio sabe. Sabemos nós e há-de saber a minha mulher. Quem mais poderá saber?
João Venâncio coçava furiosamente a cabeça hirsuta. Queria argumentar e não sabia como, a dialéctica não era o seu forte. E não tardaram a convencê-lo.
E ao findar desse dia, ainda a passarada voltejava em grande algazarra por sobre as árvores do pomar da horta, em procura do lugar da pernoita, já o S. Luís de Tolosa, o autêntico, descansava debaixo de umas sacas de serapilheira, no casão onde se guardavam as poucas alfaias agrícolas e o outro, o de empréstimo, se alçava sobre a mísula do altar-mor da Capela de S. Luís, que se a imagem era outra o santo continuava o mesmo, porque, conforme explicava mestre "Manitas" à Bia Chica, que na hora decisiva da troca se pusera com escrúpulos, a imagem de um santo é como uma fotografia, tanto dá pôr-se uma como outra, a pessoa é a mesma na fotografia e o santo é o mesmo na imagem.


III


Quando João Venâncio entrou esbaforido na barbearia já a manhã ia alta e já a casa se encontrava repleta de gente. A notícia alastrara como fogo em pasto seco. Tinham assaltado a Capela de S. Luís e de lá tinham roubado a imagem do Santo e um quadro, já muito repintado, que se cuidava ser seiscentista, em que se representava a cena do salvamento miraculoso do rei "Lavrador" da investida do urso, com o rei caído por terra fitando o céu em ar de prece e a fera, de horrendas presas abertas, investindo em vão contra uma ténue cortina de luz que descia do espaço celeste.
Na barbearia encontravam-se alguns dos clientes habituais e outros menos vezeiros que comentavam o grande assunto do dia. Sempre assim tinha sido ao longo dos anos: sucesso que perturbasse a modorra aldeã haveria de se ver dissecado na loja de mestre "Manitas". Sempre assim fora, ainda que por muito tempo a assembleia fosse mais reduzida e as conversas mais circunspectas e até algo codificadas. Coisas do tempo da outra senhora. Mestre "Manitas" chegou mesmo a ver-se incomodado pelas autoridades de então, com ameaços de que lhe encerravam a loja por ali se terem conversas que atentavam contra a segurança do Estado. Vejam só! Tudo porque se lastimava o desemprego sazonal e a miséria que alastrava como lepra pelas casas dos mais humildes. Tempos obscuros esses em que por assuntos tão comezinhos um homem arriscava a prisão e a desgraça dos seus.
Mostrava mestre "Manitas" um ar de grande consternação pelo sucedido. João Venâncio admirava-lhe a matreirice. Havia na sua pose e na sua prosápia algo de excessivo, de teatral e irónico que só ele podia entender.
-Roubaram o Santo e o quadro e se mais coisas houvesse mais tinham roubado! - dizia um.
-Só é pena o mestre "Manitas não ser pintor! - arriscou o João Venâncio.
Aquele olhou-o com um ar de reprovação. Decerto que ninguém tinha entendido o aparte, de tal modo que nenhum o questionou, mas aquele cabeça dura do João "Ouriço" era insensato. E se o era agora como seria depois de se ter encharcado em vinho na adega do Raminhos? Tal ideia deixou mestre "Manitas" preocupado. Tinha que lhe dar uma ensaboadela antes que se escapulisse.
-Ouça lá, João Venâncio, não se vá embora sem falar comigo, que eu tenho um recado para lhe dar!
Pouco tempo tinha decorrido desde aquele dia em que avistara os tais figurões rondando a capela. Teriam sido eles os larápios? Vá lá saber-se. João Venâncio havia dado pelo roubo naquela mesma manhã, quando lá fora levar visitantes, um grupo de professores interessados por estas coisas da arte e do património. Tinham ligado de imediato à autoridade e esta chega que não chega, pergunta daqui, pergunta dali, o tempo passou e, para grande decepção deste, quando chegou à aldeia com tão momentosa notícia já toda a gente sabia.
Mas o tempo ia passando e ninguém arredava pé, antes pelo contrário, mais curiosos iam entrando e metendo a sua colherada. Mestre "Manitas" já desesperava por não conseguir ir à fala com o João "Ouriço"!
-João Venâncio, vossemecê não me disse que queria comprar um polvorinho para fazer oferta lá a não sei quem? Pois venha ali à oficina que aprontei um que é capaz de ser do seu agrado!
-Eu encomendei-lhe um polvorinho? - e olhava-o com uma cara de espanto.
-Sim, homem, aqui há dias. Isto é que ele anda esquecido! - e agarrando-o por um braço puxava-o para a rua, com tal decisão que o outro o acompanhou.
-O que eu quero é dar-lhe uma palavra e não quero que os outros nos ouçam. Arre, que é preciso que lhe expliquem tudo tintim por tintim!
Contornaram a barbearia por uma azinhaga e alcançaram a pequena oficina.
-Ouça, não se ponha p'raí com palpites que os outros não são parvos e de alguma coisa podem desconfiar.
-Mas o que é que eu fiz, mestre "Manitas"?
-Por enquanto ainda nada, mas o meu compadre mete-se nos copos e depois não tem tento na língua!
-Não tenho tento na língua? Ora essa! Não me queira dizer que eu não sei aquilo que faço. Oh compadre "Manitas", olhe que eu não sou nenhuma criança! Ora essa!
-Não se enfade. É que temos que ter muito cuidado, não venham a pensar que temos alguma coisa a ver com o roubo do Santo. Afinal, quem o tem, o verdadeiro, somos nós. E agora temos de pensar muito bem o que é que havemos de fazer.
-Olhe, sabe que mais? Se eu estou metido neste enrolo é mais por sua vontade do que por minha. Se tivéssemos deixado o Santo em paz não estávamos agora com ralações.
-Pois eu continuo a achar que fizemos muito bem. Enfiámos um barrete aos gatunos, sejam lá eles quem forem, e conservámos connosco o Santo verdadeiro, que está naquela capela desde a era dos Afonsinos. Se vossemecê não dá importância a isso eu dou!
-Pois está claro que dou importância a isso. Mas como não sou autoridade e não tenho grande fé nas virtudes dos santos, bem escusava agora de estar com apoquentações.
-O que está feito, está feito! Agora temos que pensar muito bem nos passos que havemos de dar!
-Ora, vamos entregar o Santo ao Padre da Freguesia e está o assunto arrumado! - dizia, agastado, João Venâncio.
-Se fosse o Padre Januário não lhe digo que não. Era homem para ouvir a nossa história, havia de se fartar de rir, bebia um copo à nossa saúde e à saúde do S. Luís, arranjava uma desculpa qualquer para o aparecimento do santo e estava o assunto arrumado. Mas já cá não está, tantos enterrou que um dia chegou a vez dele. E esse que agora aí está é moço novo, não tenho nenhum conhecimento com ele, como é que ele vai enfrentar tudo isto? Há-de começar com perguntas e mais perguntas, há-de meter a autoridade e nós, que fizemos isto com boas intenções, ainda nos vemos metidos em trabalhos.
-Então o que é que se há-de fazer?
-Ouça, vá pensando no assunto que eu faço a mesma coisa. Eu depois passo lá pela sua horta para falarmos com mais calma.


IV


Quando mestre "Manitas" viu entrar o novo Padre da Freguesia na sua loja sentiu-se um tanto ou quanto inquieto. A que viria o homem? Mas, respondendo à saudação daquele , logo atacou com o seu melhor sorriso:
-Segundo me disseram a sua graça é Luís, Luís Amaro, não é verdade? Luís como o santo que nos roubaram. Pois sente-se, sente-se. Então o que vai, barba e cabelo? Cabelo, está visto, o senhor está bem escanhoado e é um jovem, ainda é um jovem, e os jovens não têm o hábito de fazer a barba no barbeiro. Veja lá que até já pensei em mudar o nome da profissão. Sou barbeiro por fazer barbas mas como já faço tão poucas e o que mais corto são cabelos, penso que o melhor é deixar de me chamar barbeiro e passar a chamar-me cabeleireiro. Não concorda?
O Padre Luís sentou-se, com um sorriso, agradado pela loquacidade prazenteira de mestre "Manitas"
-Não deixa de ter razão, não senhor, mas na verdade o que quero é cortar o cabelo. Dê-lhe um bom desbaste que estamos quase no Verão e ainda é forma de eu poupar algum dinheiro.
-Poupa-o o senhor, perco-o eu. Mas sempre lhe digo que o seu antecessor foi meu freguês habitual ao longo de muitos e muitos anos. A bem dizer desde que veio pregar aqui para a Freguesia, se é que o posso dizer assim. Era um bom homem, não desfazendo dos presentes. Posso dizer-lhe que para além de freguês habitual fazia-me o favor de ser meu amigo, apesar de eu não ser homem de ir à missa.
-Esse seu hábito de não ir à missa é comum à maioria dos homens aqui da região. Em sua opinião a que é que isso se deve? - perguntou-lhe o Padre, num tom cordato.
Mestre "Manitas" deu consigo a supor que um padre que não julga e não condena aqueles que não seguem os ditames da sua religião, mas antes procura compreender o porquê das suas atitudes, há-de ser por força um homem tolerante. Decerto que ele nada sabia acerca das peripécias do roubo do Santo, por aí podia estar descansado. E talvez encontrasse naquele padre um aliado para pôr um arranjo na situação. Com tacto e alguma blandícia talvez o conseguisse. E porque as razões que, segundo ele, explicavam os poucos missalizantes que na região existiam, em particular entre os homens, eram pouco gratas à Igreja, absteve-se de as desfiar e, dando-se por não entendido, perguntou:
-Então e o que me diz do roubo do S. Luís, senhor Padre?
-Que lhe hei-de dizer? Que estou muito pesaroso com o sucedido e peço a Deus que o assunto chegue a bom termo!
-Bom termo, isto é, que se encontre ainda o Santo? Sabe quantos foram encontrados daqueles que por aí têm roubado e que já não são poucos? Nenhum! E ainda tem esperanças de que este volte a aparecer?
-Tenho esperança, sim senhor. Eu sou um homem da Igreja e a esperança está sempre em mim presente, esperança que me é dada pela fé.
Mestre "Manitas" fora educado na sua juventude pela cartilha republicano-positivista, a mesma de mestre Joaquim Batista, seu professor nas artes de barbeiro e um quase segundo pai. Fora ele e os habituais amigos de tertúlia da barbearia que o haviam iniciado nas sendas da filosofia e do pensamento político, fora ele que o incitara a frequentar a escola nocturna e o orientara nas suas primeiras leituras e fora ainda ele que, já trôpego e no ocaso da vida, lhe trespassara a loja de barbeiro por um preço quase simbólico. Por tudo isso mestre "Manitas" guardava de mestre Batista uma memória reverencial.
O Padre Luís Amaro era, obviamente, mais versado do que ele em matérias de religião e deologia e acabara de conhecer o homem, pelo que qualquer altercação, mesmo que travada em tom de amena cavaqueira, seria sempre algo despropositada e petulante; depois a idade havia-lhe dado algum distanciamento crítico quanto às paixões políticas e às disputas filosóficas e ensinara-o a apreciar os homens mais pelos seus actos e menos pelos ideais que diziam professar e, finalmente, porque procurava no Padre Luís um aliado, não um antagonista, por tudo isto mestre "Manitas" resolveu não se meter nas sendas de uma discussão sobre verdades teologais, mais assentes no plano da fé do que no plano racional, por isso de difícil contestação, mormente se a disputa tem por adversário um mestre do ofício, como era o caso.
-Tem então esperança!? Pois eu digo-lhe que, apesar de poucos ou nenhuns destes roubos terem bom fim, tenho cá um pressentimento de que o S. Luís ainda há-de aparecer. É cá um pressentimento meu...
- Mas se a minha esperança radica na fé onde fundamenta o senhor o seu pressentimento?
Mestre "Manitas" teve a percepção de que aquele era um interlocutor difícil e perigoso. Teria de redobrar de cuidados.
-Não me expliquei bem. Não é bem um pressentimento, sabe... é mais um desejo, sim, é isso, desejo que o Santo seja encontrado. E sabe porquê?
E lá lhe narrou a história de toda a sua meninice.
Teve por fim uma ousadia.
-Depois de lhe acabar o corte de cabelo, que já está quase, quero mostrar-lhe uma coisa que tenho na minha outra oficina, que é já aqui atrás da barbearia.
Foram então à outra oficina.
Lá chegados, Mestre "Manitas", sem mais delongas, disparou:
-Temos aqui o S. Luís! - e dizendo isto, destapava uma imagem do santo, coberta com um pano, imagem que ele havia começado a esculpir, no maior dos segredos, logo após o roubo.
O Padre Luís ficou-se a olhá-la, boquiaberto.
-Ainda não está acabada. Faltam-lhe os retoques finais e a pintura. Não sei se o senhor Padre conhecia bem a outra imagem mas esta está tal e qual, isto é, quase, que a estou a fazer de memória.
Mestre "Manitas" esculpia o S. Luís pela segunda vez, o que não lhe era difícil, com os esboços, as medidas e as memórias que lhe tinham ficado do primeiro. Mas dos esboços e medidas nada disse.
-O senhor é um artista. Um artista...!
-Nunca tive mestre que me ensinasse este ofício. Tivesse tido eu posses e outro galo cantaria, lhe digo eu, teria ido para sítio onde aprendesse com aqueles que sabem mais do que eu.
-É então um intuitivo. E que mãos que o senhor tem. Agora percebo por que razão lhe chamam mestre "Manitas", com o seu perdão pela intimidade.
-Não tem importância, já ao meu pai assim lhe chamavam. Dele herdei o apelido e a habilidade, que o meu pai era homem sem letras mas nunca se viu ninguém mais habilidoso do que ele para talhar um bocado de madeira com um canivete. Eu até nem me importo que me chamem o "Manitas". Na verdade até gosto, dá-me um certo orgulho pela minha arte.
-Devo então entender que esta escultura de S. Luís, não sendo o senhor um homem devoto, como já me disse, é uma homenagem à memória de seu pai, é uma forma de reviver as suas memórias de infância...?
-O senhor é um homem instruído e a mim agrada-me falar com gente assim. É por tudo isso mas é também cá por uma vaidade pessoal, para mostrar a mim mesmo e aos outros que, quando quero, também sei fazer uma obra mais complicada.
-E o que pretende fazer depois com a imagem? Vendê-la?
-Não senhor. Depois de acabada levo-a para minha casa.
-Mas se vende, ao que sei, tantas outras imagens por si fabricadas, de ceifeiros, pastores e outras, por que não vende também esta?
- Não a vendo por uma questão de respeito!
-De respeito? Mas não me disse que não tem devoção?
-Bem, bem, senhor Padre! Um padre é sempre padre, não é? Está sempre de serviço. Pois um barbeiro também é sempre barbeiro e também está sempre de serviço. Vamos lá andando que já ali tenho na loja fregueses à espera.
E lá foram, com mestre "Manitas" satisfeito com a ideia de que aquela primeira abordagem lhe tinha corrido de feição. Mas que outros passos se haveriam de seguir? No outro dia, pela manhã, bem cedinho, teria que ir conferenciar com a Bia Chica e o João "Ouriço".


V

-Mas que vamos nós dizer ao homem?
-Deixe a coisa por minha conta, compadre João. Deixe a coisa por minha conta e não diga nada a não ser que lhe perguntem.
Mestre "Manitas e João Venâncio esperavam, no adro da Igreja, que o Padre Luís Amaro se desparamentasse após a missa e saísse à rua. Era Domingo e alguns poucos missalizantes, na sua maioria mulheres, iam aos poucos saindo, sinal de que ele não tardaria. O hortelão coçava com fúria a cabeça, visivelmente nervoso e contrariado.
-E você não podia falar sozinho com o Padre? É que nem sei o que hei-de dizer!
-Acalme-se lá, que tudo há-de correr bem. Vamos dizer ao Padre como é que as coisas se passaram, sem lhe dizermos.
-Dizemos sem lhe dizermos? Oh mestre "Manitas", olhe que eu não presto para adivinhas! Isso já você me tinha dito. Sempre quero ver como é que você vai dizer isso ao homem sem lhe dizer. Você não está bom da cabeça!
Eis que o Padre surgia da fresca obscuridade do templo, parando um pouco junto à porta, piscando os olhos à intensa luminosidade que se derramava do céu azul e límpido.
-Bom dia, senhor Padre! - cumprimentou mestre "Manitas".
-Bom dia, Mestre. Então o que o traz por cá?
-Eu não lhe tinha dito que tinha cá um pressentimento de que o S. Luís haveria de aparecer? Pois já apareceu!
-Já apareceu? Mas apareceu como?
E o Padre fitava ambos com um ar descrente.
-Apareceu lá na ermida. Aqui este meu amigo, de seu nome João Venâncio, mora por lá perto, tem lá uma horta, e esta manhã, vendo que a ermida tinha a porta aberta, foi ver o que se passava e lá encontrou o Santo no altar.
-Tudo isso me parece muito estranho. Não será antes o santo que o meu amigo estava a fazer? Está-me cá a parecer que isto se trata de uma brincadeira!
-Qual brincadeira, qual carapuça. Vínhamos mesmo agora aqui convidá-lo a ir connosco à capela ver com os seus próprios olhos se é ou não o santo verdadeiro.
-Vamos lá então! Vamos todos no meu carro, se não se importam.
E lá foram.
O Padre Luís, não sendo perito em arte sacra, não teve contudo dificuldades em asseverar-se de que aquela seria decerto a imagem roubada, dada a sua vetustez.
-E os senhores têm alguma explicação para o sucedido? - era visível que o Padre desconfiava de algo.
-Talvez tenha sido um milagre! - ironizou mestre "Manitas".
-Bem Mestre, Deus não tira coelhos da cartola, se é a isso que se refere. Nem você nem eu acreditamos nisso. Talvez a resposta seja mais terrena!
João Venâncio ensaiava, em passo miúdo, uma aliviadora fuga para fora da capela.
-Compadre João, não se vá embora. Venha cá. Vou-lhe então contar como é que eu penso que as coisas se passaram. É como eu penso que elas se passaram, note bem.
-Pois bem, exponha lá então a sua teoria! - respondeu-lhe o Padre, com um leve sorriso irónico na face.
-Suponha que alguém viu ou ouviu alguma coisa que o levou a desconfiar que queriam roubar o Santo da capela. Vai daí resolveu guardar este santo bem guardado e pôs aqui um outro, uma imitação, quero eu dizer. E aquilo que se pensava que podia acontecer, aconteceu. Roubaram a capela e levaram o santo que não era. Essa pessoa resolveu então colocar aqui o santo de verdade à espera que alguém o viesse a descobrir e desse parte disso. É assim que eu penso que as coisas se passaram.
-E quem é essa pessoa? Posso saber?
-Contei-lhe como é que eu penso que as coisas se passaram. O senhor aceita ou não a minha ideia, mas peço-lhe uma coisa, não me faça mais perguntas!
-Compreendo. Mas responda-me só a mais esta pergunta. Para além da imagem de S. Luís, que está agora a fazer, já tinha feito mais alguma?
-Já sim senhor!
O Padre calou-se por instantes, fitando o S. Luís com ar divertido.
-Mas responda-me só a mais esta pergunta. E onde está essa primeira imagem que o mestre esculpiu?
-Calcule que a roubaram!
-E logo calhou que aquela pessoa que desconfiou que pretendiam roubar a imagem do santo tivesse logo ali à mão uma imitação para que pudesse proceder à substituição.
-Pois foi, isto é, suponho que foi. Mas vamos parar com as perguntas, quem muito pergunta arrisca-se a que lhe mintam - rematou mestre "Manitas" já agastado.
O Padre fitou-o, subitamente sério.
-Mas essa intuição que o levou a trocar os santos foi de facto notável!
-Se calhar foi a Divina Providência que o inspirou!
-Quem sabe, mestre, quem sabe!?

VI

O povo andava levantado, particularmente o mulherio. Agora que S. Luís havia regressado à sua morada pretendiam levá-lo e pô-lo a bom recato na cidade, no Museu de Arte Sacra, ao que se dizia.
Se os ladrões haviam intentado levá-lo uma vez, conservá-lo em local tão ermo era um convite a que o tentassem uma segunda, argumentavam as autoridades. Mas então por que não se faziam obras na capela, por forma a torná-la mais segura, dando ao povo tranquilidade e ao santo um repouso mais que merecido, respondiam os vizinhos da Freguesia?
Que sim, que as obras se fariam e então se veria. Mas sobre as obras de restauro era a trapalhada habitual: as instituições empurravam as responsabilidades de umas para as outras e se alguma se via mais encalacrada havia sempre o supremo argumento da falta de disponibilidades financeiras. E se secular era a permanência do santo na capela mais velha ainda era a desconfiança do povoléu quanto às promessas de quem manda. E alguns mais exaltados, no caso mais algumas, diziam mesmo que se o santo havia regressado à sua capela, sem ninguém atinar como, levá-lo de lá seria contrariar a vontade do mesmo, porque ele havia voltado, não havia? E se não se sabia como é que o regresso do santo tinha acontecido tanto melhor, estava assim aberto o caminho à crendice e à superstição, que a capela, antes tão esquecida e abandonada, era agora lugar de romarias mais ou menos furtivas que a deposição quase diária de flores em seu redor atestava, com grande contrariedade do Padre Luís, avesso a tais manifestações.
A hierarquia bem que o pressionava a pôr cobro a tais práticas, contrárias à doutrina hodierna da Igreja. Mas parecia que neste caso a Igreja, sempre lenta a acompanhar as evoluções dos tempos, havia passado à frente da religiosidade popular, ingénua, crédula e aferrada a atavismos seculares. E que podia ele fazer? Afrontar abertamente a vontade de uma população já de si arredia das práticas religiosas? Também ele não entendia o porquê de não se iniciarem de imediato obras de restauro na velha orada. Talvez assim os ânimos serenassem.
Mestre "Manitas", da sua loja de barbeiro, que era também a sua janela para o mundo, de tudo ia dando conta. Não se surpreendeu por isso com a visita do Padre Luís.
-Então, senhor Padre, o que vai hoje?
-Hoje não vai nada, ou por outra, vai mas não são os seus préstimos de barbeiro o que eu pretendo.
-Não me diga! E em que lhe posso eu ser útil? Não me diga que vem trocar comigo dois dedos de conversa sobre o que pr'aí vai.
-Nem mais. Lembrei-me de vir conversar consigo sobre o assunto, já que me parece que é homem avisado!
-É favor que me faz. Mas diga lá então!
Encontravam-se sós, altura propícia para a conversa, não fora a entrada intempestiva de alguém que soprava, esbaforido, o que fez o Padre Luís voltar-se, com um esgar de contrariedade. Era o João Venâncio. Mestre "Manitas" com um leve aceno de cabeça deu-lhe a entender que a conversa poderia continuar sem qualquer inconveniente, o recém-chegado de tudo era conhecedor e cúmplice.
-Já não governo vida. A toda a hora me desinquietam pedindo-me a chave da capela. Ainda bem que o encontro senhor Padre, tenho aqui a chave que lha venho entregar. Se quiserem que eu continue com ela só se me pagarem um ordenado, que agora nem tenho licença de mondar uma leira de coentros.
-Acalme-se lá, compadre João, que nós estamos aqui a tentar resolver esse e outros problemas! - redarguiu-lhe mestre "Manitas". - Mas diga então, senhor Padre!
-Sejamos breves. O meu amigo sabe do pandemónio que por aí vai. A mim, o que mais me preocupa, pelas funções que desempenho, são as manifestações de religiosidade menos próprias que vêm sendo incentivadas por alguns, bem-intencionados com certeza, mas cujas práticas não são conformes à doutrina da Igreja. Espero que me esteja a compreender.
-Compreendo-o, compreendo-o. Mas há-de reconhecer que eu sou pessoa pouco recomendada para lhe valer nesse assunto.
-Ora aí é que se engana. É-o e muito!
Mestre "Manitas" olhava o tecto, acenando afirmativamente com a cabeça e com um largo sorriso na face.
-Pois bem, senhor Padre, se quer um conselho de uma ruim cabeça aí vai: quando se tira alguma coisa a alguém deve dar-se-lhe outra em troca, que é para as duas partes ficarem satisfeitas.
-É exactamente assim que eu penso!
-Senhor Padre Luís, devo dizer-lhe que nós os dois nos entendemos muito bem. E sem muitas palavras. Mas aqui quem o poderá valer não é o barbeiro, mas o artista, com sua licença para a minha vaidade.
-Mais uma vez confirmo que o senhor é homem perspicaz e que me está a entender perfeitamente.
João "Ouriço" olhava um e outro tentando descortinar algo daquela nebulosa conversa.
-Pois troca-se , sim senhor. Troca-se que o ofereço eu, em desconto dos meus pecados. Mas há uma coisa senhor Padre, e aqueles que em si mandam irão concordar com a solução?
-Nem eu teria vindo falar consigo sem ter falado previamente com os meus superiores, mestre Viegas. Eu sou um simples soldado. E para a aceitação da troca por parte dos paroquianos há um factor, de carácter psicológico, que me parece de ter em conta: é que a nova imagem é de alguém cá da terra, é alguém de cá que a fez.
João Venâncio, que descortinava agora o acordo, arriscou então uma pergunta:
-E quando é que se faz a troca?
-Em breve. Eu depois vos direi. Aliás, os senhores parece que já têm alguma prática disso!
-Nós? - retorquiu com ar sonso João Venâncio.
-Olhe, senhor Padre! Às vezes é melhor não perguntarmos que é para não ouvirmos mentiras. Ao senhor, que é homem de fé, torno a dizer-lhe que foi a Divina Providência que fez com que aquele que trocou o santo o tivesse feito em devido tempo!- acrescentou mestre "Manitas".
-E quem poderá afirmar o contrário? Ela age através de nós, mestre Viegas, sem que o saibamos. Os caminhos de Deus são-nos por vezes bastante misteriosos!
-Ora, senhor Padre, não gaste cera com ruins defuntos e convide-nos mas é a beber um copito ali na adega! - redarguiu João Venâncio. E acrescentou:
-O que mais me alegra é que quando lá pusermos o santo feito pelo mestre "Manitas", acaba-se aquela procissão de gente que não me tem deixado trabalhar.
-E sabe porquê, senhor Padre? - perguntou mestre "Manitas".
-Porquê?
-Porque ao contrário do que o senhor poderá pensar, santos de casa não fazem milagres. Ora aí tem!



 
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