quinta-feira, abril 07, 2005
 
FÉRIAS BRIOSAS


I


O outro olhava-o com um ar de troça e comiseração e ele bem o entendia: "Eu não lhe dizia? Eu não lhe dizia que isto havia de acabar assim?"
Coçava a nuca, com um ar desalentado. De facto, não tinha mais argumentos. Mas perante o sorriso triunfal do tunante, que superiormente o fitava, encheu-se de brios uma última vez:
-Digo-lhe que se torna a acontecer isto não fica assim! Sei muito bem a quem me hei-de dirigir!
-Como queirra, meu amigo, como queirra! - respondeu-lhe no seu característico arrastar de erres.
"Calma, calma! Não seria por isto que haveria de ficar com as férias estragadas. Não andava a sonhar com a quinzena de praia mal o Natal se despedia e entrava o Ano Novo, para se deixar enredar em questiúnculas menores. Mas que tudo isto lhe havia feito chegar a mostarda ao nariz, havia. Então não querem lá ver? Levanta-se um homem pela manhã e depara-se com um espectáculo daqueles mesmo, mesmo à porta da tenda? E com a mulher e as crianças a dormirem lá dentro? Uma pouca vergonha daquelas logo ao romper da manhã, ali, em pleno parque de campismo? Levantava-se sempre cedo, ficara-lhe o hábito desde menino, nado e criado até tarde no campo. Talvez por isso lhe agradasse tanto o campismo. Mas para começo de dia não estava mal, não senhor. Está o mundo bonito! Que a França é um país de costumes mais liberais do que o nosso é verdade. E que cada um faça em sua casa, ou no seu país, aquilo que muito bem entender, sem incomodar os outros, aceita-se. Mas ele conhecia a França, já por lá tinha estado, e mais do que uma vez, de férias, em casa de um cunhado que há bem mais de vinte anos se havia estabelecido na cidade de Tours e por lá havia constituído família, e nunca tal se lhe deparara em plena via pública, nem lhe constava que o fizessem. Nem em França nem em parte alguma do Mundo. Esta era demais!
O outro, o recepcionista, bem que o tinha avisado: "Nós chamamos cá o monitor mas desde já lhe digo que de pouco vai adiantar. O meu amigo não sabe mas esta gente, quando se desloca para outro país, prepara a coisa a sério e inclusivamente informam-se sobre as leis desse país. Vai dizer-lhe que eles estavam na rua a ter relações e ele vai dizer-lhe o contrário. Verá se não é como eu lhe digo." Mas se ele havia visto o casalinho a fazer o serviço, como é que o outro lhe ia dizer que não? E disse-lho. Mas calma, calma é que era preciso. Se aquilo não se repetisse mais, mesmo ali à porta da sua tenda, até que fosse lá longe, à porta de outro, isso bem lhe importava, que se importasse o outro. Mas à porta da sua tenda, não! Ele o que queria era gozar as suas férias, pacatas, com os amigos de há longos anos, alguns desde que para ali começara a ir a banhos, ainda solteiro, jogar uma suecada pelo fresco da tarde com os parceiros habituais e beber o seu whisky, ah, é verdade, hoje era ele que deveria levar a garrafa, possivelmente teria que comprar outra, a que tinha talvez não chegasse, enfim, não lhe amolassem o juízo, não o incomodassem que ele também não incomodava ninguém. Mas andarem a fornicar ali à porta da sua tenda isso nem pensar.
"Mas o senhorr viu se o pénis estava intrroduzido na vagina?" Não, não tinha visto, e nem era preciso. A não ser que fosse debruçar-se sobre o casal, para espreitar. Olha que pergunta. Nem era preciso ver tal coisa para saber o que é que estavam a fazer." Mas viu ou não viu?" Não, já tinha dito que não. "Pois então se não viu como é que pode afirrmarr que estavam a terr rrelações?" E com esta argumentação do outro tinha-se deixado enrolar.
Haviam chegado de véspera. Gente jovem, de algum colégio francês. Já se sabe o que é gente moça. Ele também já tinha passado por essa idade. Férias, longe dos olhares paternos, eles e elas juntos dias a fio, dormindo ao lado uns dos outros, o que é que se espera? Que aproveitassem enquanto tinham idade para isso. Mas que diabo, bem que podiam ser mais discretos."
E neste discorrer chegou junto da sua tenda, já a família o aguardava para irem para a praia.
-Por onde andaste que nem o pequeno almoço ainda tomaste? - perguntou-lhe a mulher.
Que tinha encontrado uns amigos que já não via há muito tempo e com os quais se tinha entretido a conversar, respondeu-lhe. Não lhe diria nada por enquanto, se é que lhe diria. Já sabia que ela não iria aprovar a sua atitude. Até lhe parecia que já a estava a ouvir: "Aí andas tu a querer endireitar o mundo!"


II


Sentia-se particularmente bem disposto. Vinha do habitual jogo de cartas com os amigos, cujo convívio sempre o dispunha bem, particularmente quando o jogo lhe corria a favor, como era o caso naquele dia. Era Verão, estava de férias na praia das suas preferências, tinha junto de si a família e o incidente da manhã era assunto para esquecer. Tudo lhe parecia perfeito. Bem, nem tudo.
Ao fundo da rua do parque, por entre os pinheiros, divisou a figura do monitor dos jovens franceses! Só agora notava, com alguma surpresa, que se tinham ambos entendido, pela manhã, em português. Mas onde raio teria ele aprendido a falar português? Melindrado que estava com o acontecido nem tinha reparado nesse pormenor. Bem, também há muitos portugueses que falam francês. Ele é que não iria perguntar-lho. Quanto menos conversas tivesse com o passarão melhor. Pensou em mudar de direcção e desse modo evitar cruzar-se com ele. Mas o outro também já o tinha avistado e estavam agora demasiado próximos, tão próximos que esse gesto já não poderia deixar de ser ostensivo e até o espertalhão considerar que ele agia assim por despeito ou cobardia. Divisava-lhe agora bem as feições e apercebeu-se de que trazia estampado no rosto o mesmo sorriso velhaco com que o tinha deixado pela manhã. O tipo queria desfrute. Pois bem, passaria por ele e se o cumprimentasse nem lhe responderia!
-Português, paneleiro! - disse-lhe, ao cruzarem-se.
Ficou estupefacto. Quando quis reagir já o outro se tinha afastado tanto que, para se fazer ouvir, ou gritava ou ia no encalço dele, em passo acelerado. Para graça era pesada, já que não existia entre ambos qualquer intimidade que justificasse ditos de tal espécie. E até mesmo entre amigos tais liberdades haveriam de ser sempre ponderadas e adequadas a circunstâncias determinadas, por forma a não redundarem em ofensa. Se o outro o havia dito por graça pois não tinha graça nenhuma. Havia ali, por muito benévolo que tentasse ser, o propósito evidente de amesquinhar e ofender. Ah, mas não ficaria sem resposta. Mas que resposta? Bem, quando o encontrasse teria que lhe dizer que não lhe admitia aquelas liberdades, que não tinham comido na mesma gamela e portanto cada um às suas. Não o iria procurar de propósito mas, quando o encontrasse, teria que dizer-lho.
-Homem, que cara é essa? - perguntou-lhe a mulher quando chegou junto da tenda. Que não era nada, respondeu-lhe num resmungo. Mas todos estranharam o seu mutismo e o seu ar agastado durante o resto do dia.


III


-"Português, paneleiro! - ouviu ciciar junto a si.
Voltou-se repentinamente. Era ele de novo e que já se afastava dando-lhe costas. Encontrava-se na bicha da caixa do supermercado. Havia ali demasiada gente, não era local propício para armar rebuliço. Foda-se, tinha hesitado, tinha hesitado, mas agora já não havia remédio, ia-lhe meter um susto dos antigos. Já a tinha pensado mas considerou que o caso não era para tanto. Não era para tanto até àquele ponto. Nem ele sabia com quem se havia metido. Porque naquela noite tinha-se aconselhado com o travesseiro e havia decidido que o assunto não merecia o incómodo de se ocupar mais dele. Que se lixasse o francês. Que se lixasse desde que não repetisse a gracinha. Mas repetiu-a. E iria repeti-la porventura mais vezes se ele nada fizesse. Pois não a repetiria mais. Pagou e dirigiu-se para a saída.
-Homem, que cara é essa?
-Olá, Fonseca! Ando chateado.
Nem de propósito. Juntaria mais dois ou três amigos de confiança, convidariam o francês para beber um copo e tratariam de ter com ele uma conversa a sério. Repentinamente decidiu que teria que tratar do assunto sozinho, como o havia delineado naquela noite. Tinha sido ele o ofendido e os amigos nada tinham que se meter num assunto que era de todo pessoal.
-Eu depois te conto. Adeus!
Dirigiu-se para a tenda. Sentou-se, a fazer tempo.
-Pai, então não vais preparar-te para ires para a praia connosco? - que não, que não ia. Talvez mais tarde, que sentia uma leve dor de cabeça e preferia ficar ali a descansar um pouco à sombra.
Viu-os sumirem-se por entre os campistas que faziam caminho para a praia. Levantou-se e entrou na tenda. Abriu o saco dos apetrechos da pesca e lá bem do fundo tirou algo envolvido num pequeno saco de plástico negro. Era um pequeno revólver que já havia pertencido a seu pai, cabia-lhe bem na palma da mão, com a coronha trabalhada com incrustações de madrepérola. Já um coleccionador lhe tinha oferecido um dinheirão pela arma. Mas não a venderia, era objecto de família e além disso tinha tirado licença de uso e porte de arma para a poder utilizar, embora raramente o fizesse. Nas suas tarefas profissionais muitas vezes tinha que se deslocar em viagem com somas de alguma importância mas raramente se lembrava de levar consigo o revólver. Trouxera-o agora, e bem escondido o mantinha dos olhares dos garotos e da mulher. Trouxera-o porque uns amigos o tinham avisado, e ele sabia-o por experiência própria, que o parque já não era como dantes, quando tudo se deixava à mão de semear e ninguém mexia no que não fosse seu, quando reinava um são companheirismo entre todos e era tudo uma família. Mas tinha o revólver tão bem guardado que os eventuais ladrões teriam tempo de chegar ao Alentejo antes que ele o pudesse utilizar. Mas o tê-lo consigo dava-lhe uma certa segurança, mais fictícia que real, é certo. No fundo era tudo uma questão psicológica, dizia ele para consigo. Mas agora iria servir.
O outro ainda por ali andaria. Os jovens franceses eram pouco madrugadores, perdiam grande parte da noite nas discotecas da praia e levantavam-se já bem tarde. E o monitor, que sempre os acompanhava na ida ao banho, tinha forçosamente que esperar por eles. Era manter os olhos bem abertos e aguardar uma ocasião propícia. A espera não foi longa. Ei-lo que vinha em direcção às tendas armadas junto da sua, onde se encontravam os jovens, ainda deitados. Escondeu-se entre os pinheiros por forma a passar-lhe despercebido. Viu-o espreitar para dentro de uma das tendas e dizer qualquer coisa. Dirigia-se agora para os lavabos, a cem metros dali. Foi-lhe no encalço, guardando uma razoável distância. Quando lá chegou espreitou à porta e não estava mais ninguém, a não ser o francês. Olhou em volta e apercebeu-se de que ninguém se aproximava. A ocasião era a ideal. Entrou resoluto. O outro urinava num dos mictórios de parede. Aproximou-se dele e encostou-lhe o cano do revólver aos rins. Sentiu-o hirto:
-Se me tornas a chamar paneleiro meto-te cinco balas nos cornos. Ficas avisado!
O outro quedou-se mudo e imóvel. Ele recuou até à porta, com a arma já metida no bolso, não fosse aparecer alguém. Toda aquela cena teria durado escassos segundos mas nunca ele saberia dizer quanto tinham durado aqueles instantes.


IV


E se ele se tivesse voltado, como iria reagir? Fora um gesto temerário, fora mesmo uma loucura. Poder-se-ia ter desgraçado, a ele e à família. Ora ali estava uma história que nunca eles deveriam conhecer. No fundo, no fundo, nada daquilo merecia a pena. Mas, enfim, estava feito. E se o diabo do francês se tivesse voltado? Mas não se voltou, quando sentiu a pistola encostada aos rins ficou mijado. Esta ideia e a circunstância em que tudo tinha ocorrido fê-lo sorrir.
-De que é que estás a rir?- perguntou-lhe a mulher.
-De nada, estou cá a lembrar-me de uma coisa! - respondeu-lhe.
Estava agora plantado à beira-mar, de braços cruzados. Observava os filhos que brincavam na água e recriminava-se por aquela atitude absurda. Deixara-se levar por um sentimento de pundonor ferido. Que se lixasse o francês mais o seu atrevimento, era assim que deveria ter levado a coisa de princípio. Ou então conversava com o homem e punha o assunto em pratos limpos. Aquilo do revólver fora mesmo uma criancice. Mas estava feito e não tinha corrido mal. Bom, era o que se iria ver. Como é que ele iria reagir? Se tivesse juízo deixava-se estar quieto.
E passou a manhã nestas cogitações.
-Ala, meninos, são horas de almoço!
E lá seguiram para o parque carregando a habitual tralha.
Uma ideia agora o atormentava. Como iria reagir o francês quando ambos se defrontassem? Porque era inevitável não se encontrarem de novo, mesmo que o tentasse evitar. Mas não iria evitá-lo. Na verdade, se estava um tanto ou quanto temeroso pelo reencontro estava ao mesmo tempo ansioso por que ele se concretizasse. Como reagiria o homem?
O filho, que na brincadeira se havia adiantado com a irmã, voltava agora para trás, em correria, e ao passar disse-lhe:
-Pai, os franceses já cá não estão!
-O quê? - e a criança repetiu o dito.
Surpreso e descrente apressou o passo para o verificar com os próprios olhos. Já lá não estavam, não senhor. Tinham partido nessa manhã.
Partiram porque já assim estava decidido ou pelo que entretanto se tinha passado? Nunca o saberia mas o certo é que já lá não estavam.
Desatou então a rir, a rir, como há muito tempo não ria nem a família, que o olhava boquiaberta, se lembrava de tal ter visto.


 
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