quinta-feira, abril 07, 2005
 
A TIA CLEMENTINA


Quando naquela manhã viu a bandeira de leilão colocada no edifício da Caixa Geral de Depósitos e lá entrou para verificar se alguma coisa lhe poderia interessar, mal ele imaginava que aqueles passos o iriam conduzir a uma das histórias mais desconcertantes que lhe haviam acontecido ao longo de toda a sua vida.
De há muito que era frequentador daquele tipo de leilões. Ourives de profissão, de ascendência nortenha como quase todos os ourives que na região se haviam estabelecido, alguns há já várias gerações, quase sempre encontrava naqueles leilões um ou outro lote de jóias que lhe propiciavam um bom negócio. Algumas daquelas jóias esconderiam decerto histórias pungentes, de desespero e angústia, teriam sido o último dos recursos a que se teria jogado mão num momento de absoluta necessidade, quando todas as solidariedades falharam e o anónimo penhorante se achou só perante a adversidade. Tinha ele plena consciência disso e era com alguma incomodidade que olhava os lucros de tal negócio. Mas se não fosse ele outro seria, e com este pensamento confortava a consciência.
Mas naquele dia julgou reconhecer uma de entre as jóias constantes de um lote. E a ser aquela que ele julgava, não fazia grande sentido ali se encontrar. Conhecia os proprietários e, tanto quanto sabia, não teriam atravessado nem estariam a atravessar um qualquer transe difícil que os obrigasse a empenharem-se e, o que é mais, a verem-se desapossados de uma jóia que, e ele bem o sabia, era uma jóia de família.
Insondável mistério! Resolveu telefonar a um dos membros da família com o qual tinha um relacionamento mais próximo, médico de profissão, há alguns anos ausente em Lisboa e que, porventura, lhe poderia esclarecer a tão misteriosa presença de tal jóia num leilão de penhores.
A surpresa foi total. Não fazia a menor ideia de como é que a jóia fora parar ao leilão. A mesma tinha desaparecido, é certo. Há já alguns anos que nem ele nem nenhum dos familiares sabiam do seu paradeiro, tinha levado um completo e inexplicável sumiço. Mas que aguardasse que nesse mesmo dia lhe telefonaria, que iria entretanto contactar outros familiares para deliberarem sobre como haveriam de proceder acerca da jóia.
E assim aconteceu. Poucas horas passadas telefonava-lhe. Que adquirisse o lote de jóias onde aquela se encontrava, era um favor que lhe fazia, e que lha vendesse. Que de forma alguma iria sair prejudicado do negócio. Mas se tal não lhe fosse possível que desde logo lho dissesse, que ele mesmo procuraria outra maneira de ficar com o lote, embora só a jóia de família lhe importasse.
O lote seria necessariamente caro. O investimento de capital seria sempre vultuoso e sê-lo-ia ainda mais se aparecesse alguém no leilão particularmente interessado em adquiri-lo e o disputasse em licitação pública, possibilidade sempre em aberto. As jóias que o compunham eram, algumas delas, de razoável idade, cuja estética estava já bem fora dos gostos mais recentes e, por isso, a sua venda seria sempre problemática e decerto morosa. Por outro lado aliavam à preciosidade própria da sua condição uma outra, adveniente, nalgumas delas, da sua idade: eram peças de colecção o que, se tornava mais problemática a sua venda, as apreciava bastante. Tudo isto perpassou de relance pela sua mente de negociante experimentado. Respondeu afirmativamente, iria tentar comprar o lote, com uma salvaguarda: se aparecesse alguém a licitá-lo por valores exorbitantes ele não poderia acompanhar esses valores. Que o compreendesse, mas por muito que prezasse a amizade e consideração que há anos lhe devotava era um negociante. Com certeza, nem ele aceitaria outra coisa, já lá diz o velho rifão "amigos, amigos, negócios à parte", mas que tudo haveria de correr pelo melhor e que decerto conseguiria adquirir o lote por um preço razoável. Seria pouco provável aparecer alguém particularmente interessado pelo mesmo. E que de uma coisa poderia estar certo, o preço pelo qual ele lhe compraria a jóia, há tanto desaparecida, seria sempre compensador, pois ele não iria regateá-lo. E que dentro de breves dias se deslocaria à província e então mais e melhor falariam sobre o assunto.


II


-Agradeço-lhe ter-se interessado e comprado a jóia. Há muitos anos já que desconhecíamos o seu paradeiro. E na verdade continuamos sem saber como é que ela foi parar ao leilão.
Encontravam-se ambos sentados à mesa do Café, bem na baixa da cidade e que, de há muitos anos a esta parte, era frequentado pela boa sociedade local, em exclusividade em tempos de antanho, mas agora partilhado com turistas, estudantes e muitos indígenas, na sua grande maioria gente sem linhagem. Os tempos tudo mudam e as classes médias, paulatina, tenazmente, iam subvertendo a ordem herdada dos velhos tempos. Começara por frequentá-lo, a instâncias do pai, que raramente lá havia posto os pés, pois era seu entendimento que assim o filho não somente granjeava estatuto como dos bons relacionamentos que ali se poderiam estabelecer resultariam bons negócios. Ademais a ourivesaria situava-se nas proximidades. E de frequentador arrivista tornara-o o tempo cliente assíduo e banal, não no sentido de trivial, sem importância, entenda-se, mas no sentido de que aquele há muito deixara de ser para si um espaço estranho, onde se sentia como convidado tolerado, onde se entra como quem entra em casa alheia, para ser um espaço onde entrava como em casa própria. Mas nem tudo havia mudado assim tão completamente. A geopolítica das mesas, quem se sentava com quem, contavam ainda muito a quem tivesse olhos para ver.
Era ainda cedo, pela manhã, e raros eram os clientes que se espalhavam pelas mesas.
-Mas porquê um interesse tão grande por tal jóia? - perguntou-lhe.
Eram contos largos. A jóia encontrava-se na posse da família há várias gerações, tantas que nem ele sabia bem. Segundo era tradição familiar, a mesma fora mandada fazer por um seu distante antepassado que fora oficial de marinha e que por bastos anos se ficara pelo Brasil, donde regressara com alguns proventos. Desde então a jóia passava de geração em geração, sendo sempre entregue à primogénita filha do primogénito, com todas as variantes que daí se possam deduzir. Por exemplo, a jóia tinha sido pertença de sua tia Clementina, que morrera solteira e sem filhos. Seguindo a tradição, seria agora pertença de sua irmã Catarina, a mais velha das irmãs nascidas de seu pai, por sua vez o mais velho dos irmãos logo a seguir à tia Clementina. Tanto quanto sabia o sistema tinha sempre funcionado bem. Eram afinal resquícios de costumes antigos que a família ainda conservava. Ou melhor, tal costume não seria hoje senão um fetichismo, uma caturrice de família a que todos se haviam habituado e a que ninguém parecia desejar pôr cobro. As instituições humanas, e a família é porventura a mais antiga dessas instituições, vivem também destes cerimoniais, destas práticas às vezes sem sentido mas que lhes acabam por dar alguma coesão, alguma unidade, e será talvez esse o seu sentido final. Quanto à jóia era bem verdade que a mesma era já tão fora de moda que ninguém hoje se atreveria a usá-la. Tanto quanto sabia a última vez que fora usada em público, e com grande contrariedade de seu avô, tinha sido numa récita do Liceu pela tia Clementina, à altura jovem estudante, quando representara um qualquer papel num dramalhão cuja acção decorria no século XIX. O avô tinha-se oposto por considerar tal atitude um desrespeito, mas a avó, que se pelava pelas artes cénicas, tinha conseguido demovê-lo. Dizia-se que também a tia Clementina era gaiteira, enquanto jovem. Ele conhecera-a já entrada em anos, azeda, sorumbática. Desgostos de amor? Dizia-se que sim, mas não é sempre isso que dizem dos solteirões inveterados? Mas se desgosto de amor houve a tia soubera manter o segredo bem aferrolhado, pois se se falava em desgosto de amor nunca ele ouvira, nem a ela nem a qualquer outro membro da família, uma referência concreta a qualquer desvalido pretendente.
A jóia, uma gargantilha, hoje só teria valor como adereço de época. De qualquer maneira não deixava de ser uma peça valiosa e que ele bem conhecia. Um gordo e pesado entrançado de fios de ouro donde pendia um medalhão cravejado de diamantes e águas marinhas. Apreçara-a há já quase trinta anos, quando a família, assustada com o curso dos acontecimentos políticos, resolvera pô-la a recato, juntamente com outras jóias, no cofre de um banco, não sem que antes as tivesse apreçado, encarregando-o a ele desse trabalho. Passada a comoção dos momentos que então se viveram, as jóias tinham retornado ao seio familiar e é a partir dessa altura que a gargantilha leva sumiço.
E já havia tentado saber como tal tinha acontecido?
Que já, mas na Caixa nada lhe puderam dizer, havia normas de serviço que impediam que se divulgasse a particulares o nome dos penhorantes. Que nem mesmo tendo invocado as circunstâncias particulares que rodeavam a jóia conseguira que lhe dissessem o que quer que fosse.
Mas talvez que se entregasse essa diligência às autoridades fosse mais bem sucedido, propôs-lhe.
Que também já havia pensado nisso.
Pois porque não fazê-lo? Ele tinha um muito bom relacionamento com o comissário local da polícia e poderia dar-lhe uma palavra nesse sentido ou, se assim o entendesse, poderia acompanhá-lo nessa diligência e irem ambos falar com o dito comissário. Assim se combinou e assim se fez.


III


Vivamente interessado pelo decurso das investigações o médico demorava-se na cidade. Foram estas breves e inconclusivas, como naquele dia lhe contou. Encontravam-se de novo no Café, como já vinha sendo hábito, onde manhã, pelo cedo, ambos se deslocavam a tomar a costumeira bica.
-Então, ao certo, o que é que o nosso comissário apurou de concreto?
Que já se sabia quem tinha penhorado a jóia mas o mistério do seu desaparecimento persistia. Um jovem da terra, toxicodependente, indicado pelos responsáveis da Caixa como tendo sido o penhorante, instado pelo comissário a dizer como é que a jóia lhe tinha ido parar às mãos respondera que a havia encontrado em casa do pai, com quem vivia e que tinha falecido meses atrás. Tanto quanto o comissário apurou, o dito jovem já tinha vendido praticamente todos os trastes que o pai lhe deixara. Diria o rapaz a verdade? Muito provavelmente. Havia então que aceitar os factos tal como eles eram e que nessa mesma tarde regressaria à capital, onde o esperava muito trabalho.


IV


-Já sabe que o tal jovem que penhorou a jóia do seu amigo foi encontrado morto em casa? - cedo, encontrava-se no Café para a matinal bica, e o comissário Mendonça, também costumeiro naquele hábito, acercara-se da sua mesa para lhe dar tal notícia.
-Sente-se, sente-se, comissário! Então como é que isso foi?
-Foi "overdose", segundo o resultado da autópsia. Nos dois últimos meses já é o segundo caso verificado no concelho. Uma desgraça, meu amigo, uma desgraça. Foram os vizinhos que alertados pelos uivos do cão, fechado dentro de casa, e que parecia ser o seu único amigo, e depois de muito terem batido à porta nos alertaram, alarmados.
O pensamento fugiu-lhe para os dois filhos menores. Esteve vai-não-vai para perguntar ao comissário se a polícia fazia tudo o que estava ao seu alcance para combater a praga que, como uma maldição bíblica, alastrara até à mais recôndita aldeia. Ele sabia de casos dramáticos aos quais mais este se vinha juntar, tanto mais dramáticos para si quanto ocorridos com gente que ele perfeitamente conhecia. E quem não conhecia tais casos? Acaso não os conhecia a polícia melhor do que ele? Acaso não os conheciam todas as restantes autoridades?
O comissário pareceu ler-lhe os pensamentos.
-A polícia faz o que pode, meu amigo, a polícia faz o que pode...
Talvez. Mas será que todos faziam? Decidiu encaminhar a conversa num outro sentido, pois aquele não parecia ser grato nem a um nem a outro.
-Agora jamais se saberá como é que a tal jóia lhe foi parar às mãos.
-Nestas coisas não existe a palavra jamais. Talvez não saiba, mas ele há casos que só são descobertos muitos anos depois e quase sempre por mero acaso. Talvez que um dia se saiba como é que a jóia desapareceu e depois reapareceu nas mãos do rapaz. Talvez que ele me tenha falado verdade e nesse caso haveria era que saber como é que a jóia fora parar às mãos de seu pai. Sabe que o pai era o coveiro aqui do cemitério?
Que não, não sabia.
-Pois era. E sempre lhe vou contar uma história ocorrida aqui perto, há muitos anos atrás, tantos que nenhum de nós ainda era nascido. Esta história ouvi-a eu a meu pai. Pois aconteceu que uma jovem, filha de gente de posses, adoece e morre com tuberculose, uma doença fatídica nessa época e que ceifou famílias inteiras. Quando se procede ao enterramento da jovem não lhe conseguem tirar um anel que ela tinha, pois o cadáver havia como que inchado. Poderiam ter-lho cortado mas, fosse lá pelo que fosse, esses pormenores não me contou o meu pai ou me contou e eu já me não lembro, a defunta foi enterrada com o anel. Passados dias começa a soar que o coveiro tinha pretendido vender um anel na vila. Pobre como era, a origem do anel levantou suspeitas e não tarda eis que o coveiro cai nas mãos das autoridades. Sabedores da história e pela descrição que lhes fazem do anel os pais da dita jovem suspeitam que fosse aquele com que sua filha havia sido enterrada. Para se tirarem de cuidados comparecem no posto da autoridade e identificam o dito anel como sendo aquele que sua filha havia levado para a cova. O que tinha acontecido? Muito simplesmente o coveiro, sabedor do pormenor do anel, tinha desenterrado o cadáver e tinha-se apoderado do anel. Macabro, não é verdade? Pois aconteceu exactamente assim como acabo de lhe contar
-Seria possível que a dona Clementina tivesse sido enterrada com a jóia e o coveiro se viesse depois a apropriar dela? Não, não é possível. Não é possível porque se trata de uma jóia que a família tinha e tem em grande estimação. Nunca o cadáver seria enterrado com a jóia. Não sei se conhece a história...
-Conheço, conheço, contou-ma o seu amigo quando procedi a algumas averiguações, como sabe. Mas talvez não fosse de todo descabido contar-lhe você mesmo esta história, um dia que calhe a estar com ele. Talvez que ela lhe possa recordar alguma coisa que permita esclarecer todo este mistério.
E por mais algum tempo se quedaram tagarelando de coisas e loisas, dos roubos dos túmulos dos faraós egípcios e do tempo que não vinha propício para as fainas agrícolas, tema que importava particularmente ao ourives, proprietário que era de umas courelas herdadas e que ele, recentemente, havia ampliado com uma compra que reputava de boa. E era aqui notória a prosápia com que ele se referia à sua condição de lavrador, pois a terra era na região, desde o tempo dos afonsinos, a principal fonte de poder e riqueza e ainda hoje se não havia esmaecido de todo esse estadão, por isso que importava ao comerciante, como a qualquer outro burguês, dourar a sua condição social com o penacho de proprietário, modesto embora no seu dizer, e ao comissário, que não possuía terras, também não era de todo indiferente o tema, pois que opinar sobre a lavoura fazia-o participar desse mundo, dessa ruralidade ancestral que teimava em persistir, que tudo impregnava de uma aura pagã que unia e dividia amos e servos, agora como no passado fonte de conflitos sociais e insanáveis ódios, que de tempos a tempos ressurgiam, brutais, telúricos , mas também alfobre de cultura que a todos amarrava num comum sentimento de pertença a essa terra por vezes avara, por vezes úbere, que tudo dava mas tudo finalmente cobrava no pó em que transformava a vida, retorno inexorável que a todos condenava. Mas quando a conversa descambou para as políticas locais o comissário decidiu que era chegada a altura de bater em retirada. Como autoridade local dizia-se isento e independente e abstinha-se escrupulosamente de manifestar qualquer opinião, por inocente que fosse, sobre as intrigas citadinas. Ao nosso ourives é que parecia excessiva tal prosápia do polícia, pois que também ele era cidadão. Mas se o comissário a alguém manifestava as suas opiniões não era com certeza a ele, e isto deixava-o um tanto exasperado, vendo aí diminuída a amizade e a camaradagem que as andanças em pescarias e petisqueiras haviam de há algum tempo forjado.


V


-Pois está descoberto o imbróglio. Que história, meu amigo, que história...
-Mas como é que descobriu...
-Não fui eu, pois aí é que está, foi a minha irmã Catarina!
-Mas então como é que foi?
-Calma, vou contar-lhe tudo de princípio, mas já agora deixe chegar o nosso amigo comissário para eu não ter que me repetir.
O comissário empurrava já a porta giratória do Café, vindo da rua. O médico havia-os convocado para aquela reunião alguns minutos antes, dizendo ter grandes notícias a dar-lhes, deixando trair na voz alguma comoção. Deixara apressadamente o balcão da ourivesaria guloso da história que prometia.
-Sente-se, comissário, sente-se! Saiba que o senhor é em parte responsável pelo deslindar da meada. Pois quem afinal descobriu todo este mistério foi a minha irmã Catarina. Mas vamos lá começar pelo princípio, que é por onde se deve começar. Havia em casa de meus avós uma criada, a Luísa, que eu, desde as minhas mais remotas memórias, sempre lá conheci. Quando os meus avós faleceram a Luísa lá continuou em casa, com a minha tia Clementina, tinham as duas mais ou menos a mesma idade. Quando a Luísa foi lá para casa era ainda moça e pode dizer-se que a minha tia e ela se fizeram mulheres e envelheceram juntas, as duas eternas solteiras. Esta convivência de anos criou entre elas uma intimidade profunda, cheia de segredos, confidências e cumplicidades. Acabaram por criar um mundo só delas onde não permitiam que ninguém penetrasse. Após a morte de meus avós ainda viveram as duas largos anos, sozinhas, naquela casa que havia albergado tanta gente e agora era demasiado grande para elas.
-Pois a Luísa sobreviveu à minha tia Clementina. Ainda é viva, encontra-se num lar que nós, a família, lhe arranjámos e lhe pagamos. A Luísa tornou-se, a bem dizer, como que mais um membro da família. Sempre que a minha irmã Catarina aqui vem não deixa de visitá-la. Foi ela que a criou desde praticamente o momento em que nasceu. Ora a história que o comissário lhe contou e que o meu amigo depois me contou, contei-a eu a minha irmã Catarina que logo ficou com a pulga no ouvido. É que, e ela recordava-se disso bastante bem, foi logo após o falecimento da tia Clementina que a jóia levou completo sumiço.
-Quando aqui esteve, na semana passada, a minha irmã visitou a Luísa e interrogou-a sobre o desaparecimento da jóia e o seu súbito reaparecimento, coisa que ela desconhecia. E é então que a Luísa, lavada em lágrimas, lhe conta o sucedido.
-A minha irmã Catarina, à altura do 25 de Abril, frequentava a Universidade em Lisboa. Namorava então aquele que é hoje o seu marido e militavam ambos na extrema esquerda. Dizia ela então que havia feito a sua opção de classe, coisa que punha a tia Clementina completamente fora de si. Meus pais, mais compreensivos, encaravam a coisa mais como um devaneio juvenil que com o tempo iria passar, mas a tia Clementina sempre se mostrou intransigente para com aquela sobrinha que ela preferia a todos os outros. Quando as coisas serenaram e apesar de minha irmã, depois de ter vivido alguns anos com o meu cunhado, ter finalmente e burguesmente casado com o mesmo, pondo assim fim à eterna ladainha da tia Clementina, nem então esta lhe perdoou de todo. E quando sentiu o fim próximo obrigou a Luísa, sob juramento, a que lhe colocasse junto do corpo a gargantilha para que ela não fosse parar jamais às mãos de minha irmã e que nunca, mas nunca, contasse o que quer que fosse sobre o assunto.
-E porque contou agora? - interrompeu o comissário com um sorriso de satisfação na face, pois não fora graças à sua história, há tantos anos ocorrida, que todo este mistério se deslindara?
-Já que a gargantilha tinha reaparecido, e estava agora nas mãos de minha irmã, a Luísa sentiu-se desobrigada do juramento que havia feito a minha tia e por isso lhe contou tudo.
-Mas como é que a gargantilha foi parar às mãos do coveiro, não me diz?- perguntou o ourives, ainda meio incrédulo com tão fantástica história.
-Pois meu amigo, a tia Clementina, por sua expressa vontade, foi enterrada em campa rasa. Passados os anos devidos, procedeu-se à inumação das ossadas que foram trasladadas para o jazigo de família. Foi decerto nessa altura que o coveiro descobriu e se apoderou da gargantilha, que veio a guardar em sua casa e que, por fim, o filho penhorou. Aí tem.
-Traga-me uma aguardente. - pediu o ourives ao empregado que passava.
-Mas você não bebe?! - exclamou o comissário.
-Às vezes, como agora, apetece-me! - respondeu-lhe.
-Traga-me também uma para mim! - disse alto o comissário ao empregado que se afastava.
-Eu também quero uma! - quase gritou o médico, com um riso que contagiou os restantes.
 
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