domingo, fevereiro 05, 2006
  Blasfémias

Alguém escreve um livro sobre Maomé. Porque o autor não encontra ninguém que lhe ilustre o livro, com medo de represálias, um obscuro jornal dinamarquês, que dá pelo título de Jillands-Posten, resolve desafiar os criativos locais e, no dia 30 de Setembro, publica doze caricaturas do profeta islâmico. Estava aceso o rastilho.
Curiosamente, só agora, passados cerca de quatro meses, o assunto é alvo da cólera dos governos e dos governados dos países muçulmanos. Porquê só agora? Não o sei. Quem o saiba que mo explique.
Clamam os líderes religiosos muçulmanos que se trata de blasfémia. Não é. Só o crente é blasfemo. O não crente, quando muito, poderá injuriar, denegrir, ofender mas nunca blasfemar.
Será então ofensiva a publicação de tais caricaturas? É-o aos olhos do crente e será de todos conhecida a grande susceptibilidade do crente muçulmano. Esse é um mundo que não conheceu qualquer processo de laicização, onde poder político e poder religioso se confundem onde, enfim, estará de todo por fazer a secularização da lei. Não nos confundamos: aqui, na Europa, o Iluminismo sucedeu no século XVIII e as revoluções liberais, suas filhas, aconteceram há duzentos anos. E no entanto, mesmo aqui, entre nós, não haveria um sentimento de repúdio se acaso, na imprensa muçulmana, surgissem quaisquer caricaturas afrontosas de Cristo ou de qualquer outro símbolo que reputamos como sagrado? Decerto que sim.
Mas o que está aqui verdadeiramente em causa é algo que para nós será um dado adquirido e inquestionável, mas não o é para o mundo muçulmano: a liberdade de expressão, a qual envolve mesmo a liberdade de asnear e ser insensato. Quem quiser poderá fazê-lo, sujeitando-se, é óbvio, ao primado da lei, mas uma lei secular, não religiosa.
Recordar-se-ão decerto do episódio protagonizado por um secretário de Estado de um governo de Cavaco Silva e o escritor José Saramago, acerca da proposição do seu livro O Evangelho Segundo Jesus Cristo para um prémio internacional. Foi de tal monta o incidente que o escritor se exilou em Lanzarote e só muitos anos depois fez as pazes com o partido a que pertence o douto e melindroso secretário de Estado, o P.S.D.. E alguns outros exemplos de susceptibilidades feridas por motivos religiosos aqui se poderiam citar e em época recente. Não estranhemos pois a cólera dos muçulmanos.
Mas se lhes reconhecemos o direito à indignação não abdiquemos jamais das nossas liberdades, tão laboriosa e duramente conquistadas, em nome de qualquer relativismo moral ou da dogmática do politicamente correcto.
Foi destituída de bom senso a publicação de tais caricaturas? Foi. São de evitar quaisquer ofensas gratuitas aos sentimentos religiosos de terceiros? Com certeza. São tais actos inevitáveis? Decerto que não. Pois que protestem os crentes muçulmanos mas que esses protestos não assumam as formas violentas que tão caras são a um sector radicalizado e fanatizado do mundo islâmico. A recente destruição das embaixadas da Dinamarca e Noruega em Damasco não são formas aceitáveis de protesto. A propósito, gostaria de ver a mesma veemência nos protesto de rua quando o que está em causa é um qualquer atentado perpetrado na Europa por um qualquer grupo terrorista de inspiração islâmica.
Na verdade, pessoalmente, que sou agnóstico, e esta afirmação não a poderia eu fazer publicamente se fosse indígena de um qualquer país muçulmano, o incidente provocado pela publicação de tais caricaturas não passa de um fait-divers, pouco merecedor do empolamento que lhe tem sido dado. 
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