domingo, setembro 17, 2006
  Ninguém Sai Ileso

De forma cirúrgica têm vindo a lume, a lume exactamente pois que tais novas são bem quentes, os nomes de algumas personalidades ligadas ao meio futebolístico como pretensos implicados no caso "Apito Dourado". E ao mesmo tempo têm-se divulgado algumas transcrições das escutas feitas de conversas mantidas por essas mesmas personalidades, constituindo o teor das conversas a matéria incriminatória.
Mas que matéria incriminatória? Tenho lido essas transcrições e francamente, as criaturas em causa apenas se têm limitado a pugnar pelas instituições que representam metendo uma cunhazinha, muito particularmente em relação aos árbitros que hão-de apitar os jogos disputados pelos respectivos clubes. Mas então a cunha não é uma instituição nacional, interclassista, intergeracional, transversal à sociedade, secular até? Não é ela filha dos tão proclamados brandos costumes e espírito de desenrascanço nacionais, matriz do nosso carácter, estruturante da nossa sociedade?
Quem não utiliza a cunha? Sim, quem? Desde o ministro que quer meter o seu tão promissor rebento no curso de Medicina, comprometido pela odiosa concorrência dos filhos desta nóvel classe média, ambiciosa e arrivista, até ao humilde funcionário autárquico que procura, em desespero, emprego para um seu familiar e que por isso, bajula, em vésperas de concurso público, o vereador que ele cuida mais susceptível de atender ao seu pedido. E poderíamos encher páginas com exemplos semelhantes.
E a que é que se resume, na sua maior parte, a militância partidária, muito particularmente a vivência das juventudes partidárias? Preparam-se aí as futuras gerações para o acto de governação pública? Ora, ora, bem sabe o meu eventual leitor para quê. Recorda-se decerto daquela frase assassina proferida por esse homem fatal, António Guterres, o célebre no jobs for the boys. E como é que se criam e se mantêm as clientelas partidárias? Escuso de pôr mais na carta.
Mas é tudo isto novo? Não é, é velho e revelho. Leia-se Camilo, leia-se Eça, este fado está lá todo descrito. Foi assim na monarquia constitucional, e foi-o antes, foi assim na 1ª República, foi assim na Ditadura, é-o agora em Democracia. O Portugal velho, profundo, castiço, persiste contra ventos e marés, revoluções e mudanças de regime. Claro que tudo isto tem um preço e um preço elevado: a mesquinhez no relacionamento pessoal, a ausência de mobilidade social, a inexistência de uma prática meritocrática e, consequentemente, a incompetência, a falta de espírito profissional, e esta pobreza ancestral que nos tem marcado e nos marca. Ainda agora assistimos ao descolar dos novos aderentes à União Europeia, enquanto nós nos quedamos pela cauda com um crescimento económico ridículo face a todos eles.
Por tudo isto me causa alguma estranheza a náusea com que alguns dos nossos mediáticos comentadores olham e comentam o caso "Apito Dourado". Afinal ele traduz-se apenas no ténue levantar de uma pontinha do tapete para onde, colectivamente, varremos a porcaria. Que a um alienígena, recentemente chegado, e a quem, às primeiras impressões de formalismo e normalidade das ruas e instituições, mostrássemos, sem contemplações, o outro lado, aquilo que todos nós sabemos, admitir-se-ia essa atitude de profundo espanto e repugância. Mas ao indígena, e ainda por cima bem informado, essa atitude de donzela ofendida, tapando pudicamente o nariz com os seus dedinhos, é apenas e só hipocrisia.
 
|


<< Home

Artigos Recentes
Arquivos
Links


Powered by Blogger

Weblog Commenting and Trackback by HaloScan.com