domingo, outubro 01, 2006
  Sob Sequestro

A Deutsche Oper, de Berlim, retirou de cartaz a ópera Idomeneu, de Mozart, por recear ataques de extremistas islâmicos pois que nesta versão, do encenador Hans Neunfels, se inclui uma cena em que, sobre quatro cadeiras, surgem as cabeças decepadas de Buda, Cristo, Maomé e do deus grego do mar, Posídon, cujo equivalente na mitologia romana é o tridentífero Neptuno. Parece que o libreto da ópera não faz qualquer alusão aos valores islâmicos sendo esta cena, portanto, resultado da imaginação criadora do encenador. Em má hora a teve, pelos vistos.
O curioso é que, aparentemente, ninguém se terá preocupado com os sentimentos dos cristãos ou dos budistas, pois que quanto ao deus Posídon, velho de mais de dois milénios e por isso com precedência histórica sobre os outros, já não há quem o defenda, remetido que está para o reino da fantasia mitológica.
Mas que fazer com todas aquelas obras culturais que ao longo dos séculos o Ocidente foi produzindo e onde as referências ao islamismo e seus seguidores são frequentes e pouco abonatórias, quando não claramente ofensivas? Vamos rasurá-las? Vamos pedir desculpa por outros, antes de nós, as haverem produzido? Teremos nós que engendrar um novo Index inquisitorial?
Punhamos nós, portugueses, o caso de Os Lusíadas, cuja importância identitária será estulto enfatizar, por demais sabida, e onde as referências negativas ao Islão são recorrentes. Vejamos um exemplo, Canto IV, estrofes 100 e 101:
100
Não tens junto contigo o Ismaelita,
Com quem sempre terás guerras sobejas?
Não segue ele do Arábio a lei maldita,
Se tu pela de Cristo só pelejas?
Não tem cidades mil, terra infinita,
Se terras e riqueza mais desejas?
Não é ele por armas esforçado,
Se queres por vitórias ser louvado?
101
Deixas criar às portas o inimigo,
Por ires buscar outro de tão longe,
Por quem se despovoe o reino antigo,
Se enfraqueça e se vá deitando a longe.
Buscas o incerto e incógnito perigo
Por que a fama te exalte e te lisonje,
Chamando-te senhor, com larga cópia,
Da Índia, Pérsia, Arábia e Etiópia.
Todos decerto reconhecem aqui a célebre invectiva do Velho do Restelo, quando a armada do Gama se apresta para zarpar a caminho da Índia. E contudo, à luz dos cânones morais hodiernos, quão politicamente incorrectas são estas estrofes. E bem andaríamos se fosse esta a única referência feita em desabono do Islão. Dê-se o leitor ao trabalho e verá quantas encontra. E então? Será que em algum dia futuro teremos que abjurar de Os Lusíadas e em nome do Poeta pedirmos desculpa? Será que teremos que editar clandestinamente a epopeia e lê-la no segredo de algum antro, qual clube de poetas mortos, por forma a não ferir a tão susceptível irritabilidade da rua muçulmana?
Até onde poderão ir as cedências e os pedidos de desculpa? Ele foi o caso das caricaturas, ele foi a aula de sapiência proferida pelo Papa em Ratisbona e ele foi agora, mesmo sem quaisquer protestos ou ameaças, veja-se já o grau de temor e condicionamento, a ópera Idomeneu. E não tenhamos ilusões, amanhã será outro qualquer pretexto, por mais insensato que nos possa parecer. Ainda recentemente se assassinou uma freira na Somália e se queimaram no Cairo efígies em papel do Papa em represália pelas palavras pretensamente ofensivas por ele proferidas. Algum dignitário do mundo islâmico pediu desculpa por tais excessos? Que eu saiba não. E contudo alguém o deveria ter feito.
Diálogo? Decerto. Tolerância e respeito pelos valores alheios? Plenamente de acordo. Mas é fundamental que haja reciprocidade.
Diz o povo que a quem muito se baixa o rabo lhe aparece. E o Ocidente há algum tempo já que anda a mostrá-lo.
 
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