sexta-feira, abril 08, 2005
 
AMORAS SILVESTRES


Apeteciam-lhe amoras. E as melhores das redondezas sabia ele onde encontrá-las. Lá para baixo, debruçadas sobre a ribeira, num sítio tão pedregoso que nem mau caminho para lá havia, faziam as silvas um monturo tão espesso que o Sol mal podia penetrá-lo. E quem vinha pela outra margem, que fazia melhor andadura, se as quisesse provar tinha que atravessar a nado o pego de águas límpidas e profundas, que nem sequer em anos de menos chuvas secava. E era aquele silvado como que seu, ainda mais desejado por não ser secreto, pois que patente aos olhos cobiçosos dos viandantes da outra margem apenas era acessível a gaiatos como ele, ávidos dos seus frutos e lépidos como cabritos, a cuja gulodice nem as penedias e muito menos o prazer de um mergulho faziam embaraço.
Saciou-se. Encheu os bolsos. Ao trepar a margem da ribeira, alta naquele ponto em que o silvado caía em cachão sobre as águas límpidas do pego, escorregou e caiu. E o inevitável aconteceu: as amoras, esmagadas dentro dos bolsos, começaram a tingir-lhe os calções com duas manchas rosáceas que alastravam. Tirou as amoras dos bolsos, lassas e a desfazerem-se em suco, e logo pensou em como se havia de livrar dos ralhos da mãe. Sempre ouvira dizer que aquelas nódoas de fruta, e particularmente das amoras, eram difíceis de tirar. Pensou despir os calções e lavá-los na ribeira. A nódoa ainda era recente, não se havia de todo entranhado no tecido e talvez assim evitasse males maiores. Mas ficar de calças na mão à vista de qualquer passante? Afastou da mente, com um esgar, tão humilhante ideia. Poder-se-ia esconder enquanto as calças secavam. Mas essa antevista espera já o impacientava, mesmo antes de ter começado. E, apesar de escondido, quem lhe garantia que ninguém o veria? O melhor era lavar os calções mesmo vestidos. O calor do corpo e o calor do Sol, que a manhã já ia alta, mais depressa lhos secariam e ficaria liberto para fazer o que muito bem lhe apetecesse.
E assim fez. Achegou-se a um local onde lhe era mais fácil lavá-los e nessa tarefa se encontrava quando percebeu sons de areias pisadas e ramos que se afastavam para dar passagem a alguém. Ergueu-se e percebeu que eram duas pessoas, não uma, que se aproximavam daqueles sítios. Mas olha quem eles eram?! A Aninhas Perdigoa e o Aurélio. Mas já ele havia regressado da Suiça? E que faziam aqueles por ali àquela hora? Então a Aninhas não ia casar dentro de poucos dias com o Tonico Marujo? E vinham ambos com tantas cautelas, em tão grande silêncio, que aquilo não era decerto coisa boa. Escondeu-se para ver no que aquilo dava.
Viu-os vagabundearem ao acaso, pisa aqui, pisa acolá, como que procurando um local escondido de olhares estranhos. Não lhes era difícil encontrá-lo: naqueles sítios as moitas de loendreiros, de garridas flores rosáceas, eram densas e as cheias das invernias haviam escavado aqui, depositado monturos de areia mais além, descobrindo ali maciços taliscosos de bordos cortantes como navalhas, encobrindo-os acolá, aqui parede alterosa, ali alicerce encoberto, de modo que os baixios e os loendreiros ofereciam inúmeros esconderijos. Finalmente lá acharam um local que lhes pareceu mais a jeito, um baixio arenoso ainda ensombrado àquela hora matinal pelos arbustos de troncos grossos como árvores que o rodeavam.
Pé ante pé, escondido entre o denso matagal, ficou-se a observá-los.
Sentaram-se e por algum tempo dialogaram, mas tão baixo que ele apenas conseguia perceber uma que outra palavra, murmurada em tom mais emotivo. E enquanto falavam ele afagava-lhe os cabelos, em gestos longos e cariciosos. Depois atraiu-a si e começaram a beijar-se. Deitaram-se sobre a areia e a troca de carícias continuou, cada vez mais intensa e apaixonada. Ele sabia dos jogos amorosos e da sua mecânica, na rua e no pátio da Escola tudo se aprende, mas não sabia dos suspiros profundos, dos gemidos contidos, do êxtase. E um sentimento de desconforto começou por se apoderar dele. Sentia que um rubor lhe tingia as faces, que não era ali o seu lugar. E sentimentos contraditórios dentro dele se debatiam. Apesar do sentimento pudibundo sentia-se também atraído por uma curiosidade de menino para quem a novidade presencial do acto constituía como que uma iniciação àquela parte do mundo dos adultos ainda misteriosa e proibida para ele. Depois pensou que ao ausentar-se poderia trair a sua presença, por qualquer ruído provocado de forma inadvertida. Este pensamento, como se fosse desculpa, confortou-o. E deixou-se ficar, quieto, alapardado e fascinado.
Mas porque aquele sentimento de desconforto pudico de todo não se arredasse, deixou que os seus sentidos se deixassem envolver pelo mundo circundante que, embora familiar, sempre o fascinava, regurgitante de vida, pleno de cores e sons.
De onde estava divisava o pego de águas límpidas; atraiu-o o baque surdo de um peixe que pinchava nas águas tranquilas e caía, ainda lhe divisou o revérbero prateado do dorso, que o Sol matinal fez relampejar; mirou a passarada que volteava no ar, atarefada no seu governo de vida, antes que o calor apertasse e a modorra a abrigasse nos folhedos densos e aprazíveis; mais além um bando de pardais ladinos, envoltos numa leve poalha, desparasitava-se, esfregando com vigor contorcionista os corpos penugentos na areia, numa desbragada e alegre algazarra. O par amoroso serenara e trocava agora suaves carícias. Também ele serenara, o sentimento de pudor e a curiosidade mórbida já não tinham ali cabimento: o tranquilo espectáculo da Natureza onde cabia todo inteiro o par amoroso, e ele próprio, isso sim, fazia sentido.
Ela agora chorava. Via-lhe os ombros estremecerem com os soluços que tentava conter com ambas as mãos na boca. Ele falava e gesticulava de manso. Escondeu-lhe então o rosto contra o peito e os soluços foram-se espaçando, enfraquecendo. Colheu uma flor do loendreiro, que sobre eles caía em capela, e prendeu-lha no cabelo. Deu-lhe um beijo, um último beijo, e partiu. Ela ainda se ficou por longos minutos, sentada, fitando ora o chão ora o azul infinito do céu. Por fim também partiu, de ombros caídos, desalentada.
E só muito depois ele se atreveu a deixar o seu esconderijo e a regressar a casa, com uns olhos brilhantes de espanto e novidade.





-Mãe, não é verdade que a Aninhas Perdigoa vai casar com O Tonico Marujo?
-Não se fala noutra coisa. Mas por que perguntas isso?
-Por nada. Era só para confirmar. Mãe, sabes quem eu vi ontem? O Aurélio. Já veio da Suiça.
-Também já ouvi dizer.
-Mãe, nunca ouviste dizer que o Aurélio e a Aninhas gostavam um do outro?
-Ora! Isso foi coisa dos bancos da Escola. O Aurélio é um moço pobre, criado pela mãe com muitas dificuldades. Perdeu ele o pai tinha ainda meses. Muitas vezes a minha mãe valeu à mãe dele, a tia Mariana.
-E como é que sabes que eles não gostam ainda um do outro?
-E que gostem! O Bento Perdigão nunca iria permitir que a sua querida filhinha casasse com um pobretanas. Rico casa com rico e pobre casa com pobre.
-Mas nas telenovelas...
-Isso são tudo fantasias com que o povo se engana, filho.
-Olha que às vezes não são fantasias!
-Olha lá, mas o que é que tu sabes que eu não saiba, hem?
-Nada, mãe, nada.
E partiu deambulando ao acaso pelas ruas da aldeia. Rebentava por não revelar o seu segredo a alguém. Mas a quem? Sim, a quem? Aos colegas de Escola? Impensável! Tão certo como dois e dois serem quatro em como passada uma hora toda a aldeia o saberia; não passavam de um bando de fedelhos linguarudos e sem-vergonha. E ele tinha consciência, nos seus verdes anos, do escândalo retumbante que assolaria a aldeia e léguas em redor se tal se viesse a saber. Durante dias, semanas até, seria tema de conversa mais que obrigatório, saciaria bem a crónica de maledicência e mesquinhez a que muita daquela gente se dedicava com verrina e paixão doentia. E isso era a última coisa que ele desejava que acontecesse. Não é que ficara a simpatizar com o par? Bom, ele até que já há muito gostava da Aninhas Perdigoa, julgava-a até a moça mais bonita da aldeia: alta, com o seu cabelo castanho levemente ondulado, uma tez suavemente morena, enfim, seria ainda uma criança mas tinha olhos na cara e sabia perfeitamente distinguir o feio do bonito. E quanto ao Aurélio até que lhe tinha simpatia, sempre que vinha de férias, dos trabalhos sazonais na Suiça, metia-se com ele ao vê-lo na rua e ainda no Natal passado lhe trouxera um chocolate suiço, grande como nunca havia visto.
A sua mãe? Nunca o faria, não seria jamais capaz de contar-lhe o que havia presenciado, impedia-o um sentimento de vergonha e decoro. E pelas mesmas e acrescidas razões não seria capaz de contá-lo a seu pai. Só que o segredo era maior do que ele e rebentava se o não partilhasse com alguém.
E quase sem querer achou-se junto à loja de roupas finas para senhora que a Aninhas possuía, que lha havia montado o pai quando ela, com muitos rogos e insistências, lhe dizia que queria trabalhar na cidade, que a pasmaceira da aldeia a deprimia e que precisava de espairecer.
-Chega de mata-mata! - respondeu-lhe ele um dia, já colérico. - Se quer trabalhar trabalhe ao menos para si e não para os outros! Diga lá que negócio quer que eu lhe monte que eu trato já disso. Mas trabalhar para outros não trabalha, porque não precisa. Não tem tudo o que quer? Ora esta, onde é que já se viu?
E assim surgiu na aldeia a boutique de roupas de senhora, porque a filha de Bento Perdigão, no entender de seu esclarecido e abastado pai, jamais trabalharia em casa alheia.
Entrou. Encontrava-se sozinha, sem clientes E tinha um ar infelicíssimo, tão infeliz que até mesmo um coração duro dela se apiedaria. Quando o viu tentou esboçar um sorriso, que saiu frouxo, forçado.
-Bom dia, Aninhas!
-Bom dia, Carlinhos! Então, como têm decorrido essas férias?
- Bem! E como a minha tia Margarida já me convidou a ir passar duas semanas a casa dela, no Algarve, ainda vão ser melhores.
- Pois, a tua tia vive no Algarve...
Claramente não lhe apetecia conversar. Ele percebia-o pelo seu tom de voz, lamuriento e sumido. Só o fazia, a pobre coitada, para tentar ser simpática e disfarçar a tristeza que lhe transparecia nos olhos tristes e magoados.
E como uma névoa que lentamente se vai adensando, um sentimento de absurdo e de revolta se foi apossando do seu espírito. A cena que havia presenciado na véspera, a conversa com sua mãe, a infelicidade da Aninhas, e sobre tudo isso a figura de Bento Perdigão, pairando como uma hedionda ave negra, tudo lhe pareceu desconexo, ilógico, peças de um puzzle que ele não conseguia arrumar mas, o que era pior, não suportava ver desarrumadas.
E então, de forma tão irreflectida que ele próprio se surpreendeu, disse-lhe:
-Aninhas, ontem vi o Aurélio.
-Sim? Onde? - respondeu-lhe ela, laconicamente, num fio de voz tão ténue que era quase imperceptível.
-Vi-o ontem de manhã, junto à ribeira!
Ela ergueu a cabeça num gesto brusco, subitamente interessada.
-E também te vi a ti!
-E também me viste a mim?
-Aninhas, por que não casas com o Aurélio?
Viu-lhe o peito estremecer e grandes e copiosas lágrimas lhe despontaram dos olhos.
-Deixa-me, vai-te embora! Que sabes tu da vida? Deixa-me... - e as lágrimas deslizavam-lhe pela face, quase sem soluços.
Sentiu-se sem palavras e com um profundo sentimento de culpa por ter causado aquele tão lacrimoso transe. Mas quem o mandara meter-se na vida alheia? Afinal que tinha ele a ver com os amores e desamores dos outros, que tinha ele a ver com esse mundo adulto tão cheio de absurdos e incompreensões? E saiu rua fora revoltado contra si, contra a Aninhas, contra o Aurélio, contra tudo, contra todos.





Umas mãos, num gesto terno e suave, taparam-lhe os olhos. Aspirou lentamente o aroma que das mãos e do corpo se desprendia. Era o mesmo perfume que havia sentido, no dia anterior, na loja da Aninhas.
-Aninhas! - disse.
Ela soltou-o e virou-o para si.
-Como sabias que era eu? - perguntou-lhe risonha.
-Adivinhei!
-Tu adivinhas e vês demasiadas coisas!
E olhavam-se e sorriam um para o outro, num sorriso amigo e cúmplice.
Ela baixou-se e colocando-lhe as mãos sobre os ombros fitou-o, olhos nos olhos:
-Aquilo que tu viste é um segredo que fica entre nós, não é? Ou já contaste a alguém? - perguntou-lhe num tom meigo mas onde se notava também alguma apreensão e súplica.
-Não, não contei a ninguém!
-Nem vais contar, pois não?
-Não, não vou contar a ninguém! - disse-lhe, erguendo a cabeça num gesto resoluto e categórico.
Ela passou-lhe a mão pelo rosto, numa suave carícia de agradecimento, rindo mais os olhos do que o rosto, uns olhos de onde haviam quase desaparecido as trevas magoadas e a angústia que tanto o haviam impressionado no dia anterior.
-Não conto a ninguém mas tu prometes-me uma coisa. Se tiveres um menino ele há-de chamar-se Aurélio!
Ela riu-se, num riso prazenteiro e surpreso.
-Ora, que ideia a tua!?
-Prometes?
-Prometo! - disse-lhe num ar subitamente sério.
E ele soube que assim seria, no abraço forte e sentido que ela lhe deu.








Era sábado, não tinha aulas, e mesmo que tivesse, não deixaria nunca de comparecer ao baptizado do filho da Aninhas.
-Onde vais? - perguntou-lhe a mãe, estranhando vê-lo tão madrugador, ele que tanto gostava de ficar a preguiçar na cama nos fins de semana libertos dos trabalhos escolares.
-Vou ver o baptizado do filho da Aninhas!
-Mas alguém te convidou? Não sabes que a casamento e baptizado só vai quem é convidado?
-Ora mãe, vou só ver. Que mal tem?
E ali estava ele. Como se precisassem de o convidar para tal cerimónia, sim, a ele, que antes mesmo de o menino existir já estava convidado, ele que era o verdadeiro padrinho daquela criança pois, afinal, quem lhe pusera o nome?
A igreja encontrava-se repleta com os numerosos convidados. O templo até nem era muito grande mas, na verdade, os convivas eram muitos, pois Bento Perdigão queria que a cerimónia estivesse de acordo com os seus pergaminhos de homem influente e abastado e fosse digna do seu neto, o seu primeiro neto.
E o momento solene aconteceu. O velho Padre Anselmo, que já havia baptizado três ou quatro gerações de paroquianos, ergueu a concha nas suas mãos já trémulas, e pronunciou as palavras sacramentais:
-Aurélio, eu te baptizo em nome do Pai...
Respirou fundo. Sentiu-se subitamente reconciliado consigo e com o mundo. Até o Bento Perdigão, que olhava embevecido e com os olhos orvalhados o seu primeiro neto, que esbracejava e chorava incomodado com a água que sobre si derramavam, lhe parecia agora mais simpático.

 
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