terça-feira, julho 19, 2005
  Quase uma Aldeia

Onde quer que estejamos divisamos o campo. Se não, basta deslocarmo-nos algumas dezenas de metros para o vermos, sempre, omnipresente, senhor que foi dos destinos passados, penhor que é de sobrevivência futura.
A cidade cresceu mas não cresceu tanto que perdesse essa aura rural que tanto a continua a marcar. Existe uma gastronomia citadina? Não existe. A gastronomia é claramente de feição rural: o pão, o azeite, o vinho, as ervas aromáticas são os pontos cardeais de uma ementa de despensa pobre mas de imaginação exuberante. Sim, é necessária uma fértil criatividade para com tão parcos condimentos elaborar tantos e tão ricos sabores. Pois é, ele há também a doçaria, mas aí estamos num outro campo, numa micro-sociedade, a dos conventos e mosteiros, de modo algum representativa do quotidiano das gentes comuns. O consumo de doces era um hábito aristocrata, ou não fossem as freiras , na sua maioria, provenientes da casta fidalga. Mas para a doçaria conventual era a despensa farta e rica: ovos, açúcar, farinha, amêndoa, eis a paleta com que se compunham os paladares que as freiras degustariam com ar pecaminoso, pois que privadas de outros prazeres. Como aquela princesa de um dos muitos reinos em que se dividia a Itália pré-garibaldina e que exclamava, em êxtase, comendo um gelado: "Que pena não ser pecado". Se era assim com a princesa transalpina, conhecedora do pecado, senão não lhe ocorreria tão bizarra associação, imagine-se o deleite com que nas austeras arcadas conventuais as sorores de antanho comeriam os seus tão requintados doces.
Mas se é uma quase aldeia na gastronomia também o é nos costumes, no trato. É deambular por algumas ruas de extracto mais popular, nestas noites mais quentes de estio e ainda podereis ver os vizinhos sentados no passeio, à porta de suas casas, tagarelando à espera que o relento chegue e lhes permita regressar a penates. E mais se veriam não fora a fatal atracção da pantalha televisiva com as suas pantominas baratas. Assim era nos bairros populares, não nos outros, habitados por, dizia-se então, "gente fina", para quem sentar-se na rua ao cavaco com a vizinhança era desaforo próprio de plebeus.
Mas é ainda uma quase aldeia nas formas de convivência. É passar pelas Portas de Mértola, pela manhã ou pela tarde, faça chuva ou faça Sol e vereis um permanente grupo de ociosos, na maioria de provecta idade, em pé, junto às paredes, comentando as novas do dia ou reparando de forma mais ou menos ostensiva em quem passa. Mulheres? Algumas e só de passagem. É verdade que o surgimento de esplanadas veio amenizar um pouco este ambiente campestre, povoadas que são por alguns, raros, turistas. Mas quereis marca mais aldeã do que esta? Reparem até no trajar desses admiráveis citadinos a quem não falta, em muitos, chapéu ou boina. Na verdade vereis aqui, no centro da cidade, o que vereis em qualquer aldeia do Alentejo. 
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