domingo, julho 03, 2005
  Santos e Mastros Populares

Transcorreu Junho, mês dos Santos Populares, a tríade Santo António, São João e São Pedro, e nós quase nem demos por isso. E quase nem demos por isso porque os folguedos populares com que se cultuavam os ditos quase não existiram. A forma tradicional de cultuar estes santos era através dos bailaricos que se celebravam em torno de um mastro e se mastros houve este ano, e parece que os houve, dois tanto quanto me foi dito, erguidos em bairros de cariz mais popular, tão discretos foram os folguedos em torno deles celebrados que passaram despercebidos.
Estranha forma esta de prestar culto a tão dignos e veneráveis membros da hagiologia católica, práticas cultuais que só podiam passar por licenciosas aos olhos da severa moral cristã. E contudo tais práticas eram toleradas. Como tantas outras práticas rituais e simbólicas mergulhariam as suas origens em cerimoniais pagãos com que os nossos antepassados pré-romanos e posteriormente romanizados celebrariam o solstício de Verão, práticas próprias de sociedades agrárias, firmemente ancoradas ao ritmo das estações do ano e aos caprichos do tempo e que com elas procuravam captar a benevolência da mãe Natureza. Moldados ao longo de milhares de anos estavam tais cerimoniais tão enraizados na alma do vulgo que a Igreja, incapaz de todo de os extirpar, metamorfoseava-os em rituais aos quais sempre se davam umas pinceladas de cosmética religiosa canónica que os tornasse, benevolamente, toleráveis. E os ritos celebrados em torno de um símbolo fálico, que é exactamente aquilo que o mastro representa, tantas voltas levaram que vieram a descambar num mais aceitável culto a uma trindade de santos apelidados de populares.
Anos há, e não muitos, em que os mastros animavam as noites quentes de Junho e as comissões de rua e de bairro, espontaneamente criadas, rivalizavam no erguer do mastro mais catita. Tempos em que eu e uma súcia de amigos fazíamos a ronda dos mastros até alta madrugada. Eram famosos os mastros do Terreirinho das Peças e do Largo de Santo Amaro. Mais tarde pontificou o do Jardim das Alcaçarias, animado pela Associação Cultura e Recreativa Zona Azul, que aí lograva obter alguns fundos. Depois, bem depois estas festividades foram perdendo fôlego, novos hábitos surgiram, tempos houve em que os serviços culturais da Câmara Municipal procuraram reactivar os mastros populares concedendo subsídios às comissões promotoras e atribuindo prémios aos melhores, mas quando isto acontece, quando as entidades oficiais começam elas a promover e subsidiar tais manifestações de cariz popular, é isso sinal de que se está à beira do fim.
Mas os mastros que eu conheci na cidade também já não tinham um cariz genuinamente popular: eram animados por conjuntos musicais e dançava-se ao som de, imagine-se, muitas modinhas brasileiras e até francesas e italianas. Mastros populares conheci-os eu na minha infância, na aldeia onde então vivia, em que os participantes, à luz de um lampião a petróleo, dançavam ao som das modas que eles próprios cantavam: "Quem anda no meio é bem bonitinho, para namorar tem todo o jeitinho..."
Rituais e práticas simbólicas que remontarão àquelas que decerto se praticavam no Cromeleque da Herdade do Xerez, no termo de Reguengos de Monsaraz, com sua cercadura de menires rodeando um outro de formas mais avantajadas colocado ao centro, manifesto símbolo fálico. Cerimoniais que sociedades agrárias moldaram ao longo de milhares de anos e que os tempos levaram. Que outras práticas e ritos lhes sucederão? Alguns serão, as sociedades humanas não vivem sem tais manifestações. Parece vivermos num portal da História, em tempos que já não são mas cujo rosto futuro não nos é ainda perceptível. A caminhada iniciada com a revolução neolítica estará a chegar ao fim. Que nos sintamos privilegiados por vivermos estes tempos e não nostálgicos por um tempo que se foi e não regressará. Ergamos a taça aos tempos vindouros. 
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