domingo, setembro 04, 2005
  Nova Orleães Deserdada

Das profusas imagens que nos têm chegado do calamitoso estado da cidade de Nova Orleães, após a passagem do furacão Katrina, um aspecto desde logo se me evidenciou como estranho e cuja explicação os media tardaram a dar: as multidões que ficaram na cidade e que agora careciam de urgente auxílio eram, maioritariamente, constituídas por negros. Porquê? Perguntava-me, suspeitando a resposta.
E a resposta é que o "Deep South" ainda não saldou de todo a sua dívida para com as populações negras que foram, enquanto mão-de-obra escrava, o sustentáculo da sua prosperidade e que ainda hoje ocupam as franjas mais desfavorecidas e marginais de uma sociedade rica, opulenta e profundamente injusta.
Sim, os pobres são ignorados, como se fossem não-pessoas, como algo incómodo com quem, esporadicamente, o americano médio se cruza nas ruas, são os "loosers" de uma sociedade presa nos meandros do seu egoísmo e veneradora de valores dicotómicos, que se habituou a incensar os seus ricos, exemplo máximo do "winner", modelo social que muitos, esforçadamente, procuram imitar com aplicação, zelo e, suponho, ausência de espírito crítico.
10% será a percentagem de pobres no total da população americana, que sobe para os 30% na cidade de Nova Orleães, que por sua vez apresenta um dos mais baixos produtos per capita entre as grandes cidades da União. E toda aquela gente desesperada, que nos foi dado ver, eram parte substancial desses pobres que ficaram por não terem meios para partir, nem porventura teriam onde ficar na própria cidade, integrantes que seriam, muitos deles, desse numeroso exército maltrapilho dos sem-abrigo que deambula pelas grandes cidades americanas.
Imagens de incúria social, imprevidência e desmazelo na prestação de primeiros socorros que chocam com essa outra imagem de uma nação rica e orgulhosa. Decerto que a poderosa máquina económica e administrativa americana depressa sarará as feridas deixadas pelos furores da Natureza implacável. Mas as imagens iniciais que nos ficaram na memória são aquelas que nos habituámos a associar a um Terceiro-Mundo desorganizado e carente.
E a cidade? Será ela capaz de renascer com a sua alegria, com a sua música, com a sua deslumbrante cultura crioula? Bom seria. Cidade ícone, mãe dessa expressão musical síntese das culturas africana, americana e francesa, e finalmente crioula, berço dessa figura maior do mundo da música, sem distinções, que foi Louis Armstrong, cujo aeroporto internacional leva o seu nome, símbolo feliz e maior do "melting-pot" americano, será sempre referência quase mítica para todos aqueles que gostam de Jazz ou, se não, apreciam a "joie-de-vivre" que ali ficou plantada por influência gaulesa e que, orgulhosamente, a cidade exibe e contrasta com uma outra América, puritana e quantas vezes hipócrita.
P.S. - Não conheço Nova Orleães, como não conheço tantos outros locais espalhados por esse Mundo e que, não obstante, admiro e prezo como se fossem meus também. 
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