terça-feira, setembro 20, 2005
  A "Doutorite"

Enferma o País de vários males, de índole cultural e social, de tal forma enraizados que, como um sarro imune a sucessivas lavagens, persistem em permanecer como um traço de carácter que nos afasta irremediavelmente daquela modernidade por que almejamos.
Entre essas taras avulta a da "doutorite". Creio não haver país algum no mundo, pelo menos naquele mundo a que queremos pertencer, onde exista uma tão grande densidade de "doutores" por quilómetro quadrado. Ele é "doutor" para aqui, "doutor para ali", os doutores tudo enxameiam. De título académico converteu-se em factor de promoção e estatuto social. Ele não há bicho-careto algum que, investido em funções de carácter político ou empresarial, por pouco relevantes que sejam, não passe a ostentar, de imediato e publicamente, o título de doutor. Mesmo que o não seja.
O "doutor" de hoje corresponderá, de forma agravada, ao barão dos tempos da monarquia liberal. Barão que era objecto de sátira de cronistas, jornalistas, poetas e outros que com mais acutilância observam a sociedade e as suas taras. João de Deus, a propósito da "baronite", compôs o célebre epigrama em que dizia:
"Foge, cão, que te fazem barão!
Para onde, se me fazem visconde?"
Experimente o leitor, em local onde não seja conhecido, apresentar-se de fato e gravata e dando-se ares, e muito possivelmente o empregado de balcão, o empregado de mesa, trata-lo-á por "doutor".
Não deixa de ser curiosa esta "doutorite aguda" num país que, ainda na década de sessenta, apresentava uma taxa de analfabetismo que rondava os 40% e, ainda hoje, continua a liderar o "ranking" dos países europeus, com uma taxa que medeia entre os 8 e 10%.
Há nesta postura o seu quê de novo-riquismo, de ostentação ridícula e pacóvia de quem nunca nada teve e de repente se vê senhor de algo que o deslumbra e que ele entende exibir despudoradamente, para que também o mundo se possa deslumbrar com ele.
Em boa verdade existem na carreira académica vários degraus dos quais o último é, precisamente, o de "doutor": bacharel, licenciado, mestre e doutor. E aqui é que bate o ponto: Portugal é, na Europa a que queremos pertencer, e não só de um ponto de vista geográfico, o país com menos doutorados relativamente à população estudantil.
Esta distorção resultará do facto de termos assistido, num escasso número de anos, a um aumento muito significativo da população estudantil ao nível do ensino superior, o que é de saudar. Os doutoramentos surgirão a seu tempo.
Alguém que visitasse o País e não fosse conhecedor da língua nem conhecesse o exacto significado da palavra "doutor", julgaria tal palavra como integrante da onomástica nacional e que o país teria mais ou menos ensandecido, tanta era a gente que tinha por nome "doutor". A seu tempo, esperemo-lo, a "doutorite aguda" ir-se-á esbater e ceder o seu lugar a uma atitude mais natural e cordata de maneira a que passemos a ser Zés e Manéis e outros que tais, que esses sim, são nomes de baptismo. 
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