domingo, outubro 23, 2005
  Que fizeram de ti, Mariana?

Estavas tu, linda Mariana, posta em sossego, e incomodam-te para um desconchavo destes. Celebram em teu nome uma Feira dita do "Amor" e eis no que te transformaram: numa cortesâ, numa feirante que vende beijos, "não vai um beijo, ó freguês?", numa traficante de unguentos afrodisíacos e de toda a parafernália de objectos ditos eróticos. Só faltou mesmo utilizar o teu nome como marca de preservativo ou quejando. E que tens tu a ver com tudo isto, Mariana? Nada, absolutamente nada.
Aqueles que em teu nome celebram o mais desbragado hedonismo não te perceberam. Tu foste apenas, o que não é pouco, uma noviça encarcerada entre as paredes de um Convento, desde criança, e que aí te fizeste núbil, donzela sonhadora, e que vieste por fim a apaixonar-te louca, obsessivamente, por um galante, presumo eu, cavaleiro francês que, no período da Guerra da Restauração, aqui comandou seus homens de armas. Que fácil te terá sido apaixonares-te por esse cavaleiro, tão diferente daqueles homens rudes e ignorantes que até então havias conhecido, que poucos seriam sem dúvida, os teus familiares e poucos mais. A França, mãe da moda e da etiqueta, decerto lhe teria suavizado os modos, modulado a voz. E foi pela paixão louca e insensata, e que paixão não o é, que a esse homem dedicaste, ele sim, um cortesão habituado ao ludíbrio e aos jogos frívolos do amor palaciano, que tu, enganada e abandonada, escreveste essas cinco cartas de amor que logo te imortalizariam.
Dizem alguns que não foste tu que as escreveste. Como seria possível que uma simples noviça, educada num Convento situado em nenhures, longe dos grandes centros de produção cultural, sem quaisquer contactos com gente ilustrada e dada às artes e convenções literárias, escrevesse tais cartas, argumentam? Que milagre teria sido esse que te possibilitou tal profundeza de análise psicológica, tal mestria na arte de dizer? Tenho em mim que foste tu que o fizeste, Mariana. Em ti não sei onde acaba o mito e começa a realidade, mas tu és mito, Mariana, tu superas a realidade, que importa a realidade, e quando o mito supera a realidade, escreve-se aquele, não a realidade.
Suportará a lenda estes agravos? Decerto que sim.
Verdade seja dita, no vetusto Convento onde transcorreram os teus dias, as comemorações tiveram a dignidade que o local e a tua figura de amante imortal merecem: fizeram uma exposição bibliográfica, sim, as tuas cartas encontram-se traduzidas nas mais variadas e díspares línguas, e iconográfica, a tua imagem, mítica, etérea, mereceu a atenção e devoção dos grandes mestres da pintura. Mas quanto ao resto, Mariana, é para esquecer. Suportarás tu tais agravos? Decerto que sim. Que são algumas manifestações de mau-gosto em torno da tua memória, em que poderão beliscar elas a tua imagem de símbolo universal do amor e da paixão? Mas lá que aborrece ver tal bastardia acontecer na urbe que te viu nascer e morrer, lá isso aborrece.
E foi para veres tantos abrolhos que te foram despertar do teu secular recolhimento? Mais valia que te tivessem deixado em sossego, Mariana. 
|


<< Home

Artigos Recentes
Arquivos
Links


Powered by Blogger

Weblog Commenting and Trackback by HaloScan.com