quarta-feira, março 01, 2006
  Marcas Sociais



Quando eu era criança a forma de tratamento usual entre familiares era o você. Era assim que eu me dirigia aos meus pais, tios e avós. Entre irmãos e primos tuteávamo-nos. Estranho era para mim ver o mais novo dos meus tios tratar o meu pai por você, pois que era ele o primogénito. Resquícios de antigos hábitos que obrigavam os irmãos a uma particular deferência para com o morgado, herdeiro de todos os bens familiares e benfeitor dos irmãos, quando o era, embora aqui nem fosse o caso, pois que os meus familiares eram todos de modesta condição social e os escassos bens que os meus avós possuíam tão escassos eram que nem dariam azo a qualquer demanda por partilhas.
Longe de mim sequer a ideia de tutear qualquer um dos meus familiares. Se à primeira poderia ser levado o despautério à laia de equívoco provavelmente, se segunda houvesse, acabaria por apanhar uma lambada, ou mais, porque do visado apanharia na certa e depois viriam as contas a ajustar com meus pais.
E se assim era no seio de minha família assim era em todas as outras à excepção, ele há sempre excepções, da família de um meu amigo, companheiro de escola e de brincadeiras mas cuja família pertencia a um outro extracto social, gente abonada em terras e cabedais e com licenciados entre si, enfim, gente com outro estadão e que entre si se tuteava. E causava-me uma certa estranheza ver o meu amigo tratar por tu todos os familiares, pais e avós incluídos. Cuidava eu então que aquela forma de tratamento era fruto de requinte educativo e civilizacional, admissível entre gente que se poderia permitir fazê-lo sem que com isso se abastardassem as formas de relacionamento respeitoso que haveriam de imperar entre familiares.
Os anos transcorreram e tudo mudou. Hoje a minha filha tuteia-me assim como à mãe e restantes familiares. Mas entre as classes possidentes, ou que assim presumem, pois que começa a ser de regra a mobilidade social, toda a gente se trata por você, não apenas os filhos em relação aos pais e outros familiares, mas os irmãos e os cônjuges entre si e até entre amigos.
E entre amigos e amigas é de regra um só beijo na face e não dois, como o fazem aqueles de menor estatuto social. Afinal as formas de tratamento, ao contrário do que pensava a criança que eu fui, nada têm a ver com uma particular e refinada educação mas mais não são do que marcas sociais, símbolos , códigos de comunicação e diferenciação.
E eis como a língua e as formas de cumprimento se convertem em factores de diferenciação e estratificação social. Línguas há menos passíveis de serem usadas sob este ponto de vista. O inglês apenas tem o you, que tanto significa tu como você. Mas isso não impediu que a sociedade inglesa fosse uma das mais estratificadas da Europa, pois nela se pode catalogar socialmente um indivíduo pela pronúncia. E se o Brasil adoptou apenas e só o você, não deixa por isso a sociedade brasileira de ser uma das mais injustas e desiguais não apenas da América Latina mas de todo o mundo.
As marcas de diferenciação social eram no passado mais e mais marcantes. Desde logo o vestuário e a capacidade expressiva, de elocução. Essas atenuaram-se mas outras, mais subtis, subsistem.
Elas são patentes até nos hábitos gastronómicos. Um amigo meu, snobe quanto baste, confessou-me um dia que havia deixado de pedir como entrada, nos restaurantes que frequentava, melão com presunto, e como ele gostava de melão com presunto, quando se apercebeu de que tal entrada se havia de tal modo banalizado que até nos restaurantes mais modestos a serviam.
 
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