sexta-feira, abril 08, 2005
 
CRISTAIS PARTIDOS


A bruxa do Monte Novo não tinha um ar andrajoso nem cavalgava uma vassoura; nem sequer tinha aquela inevitável verruga no nariz, como todas as bruxas que se prezam, isto conforme as histórias com as quais, num sentimento confuso de encanto e temor, povoámos a nossa imaginação no já distante reino da infância. Não senhor, a bruxa do Monte Novo vestia-se bem, dizia-se até que só comprava as suas roupas nas melhores lojas da capital, era frequentadora assídua do cabeleireiro, deslocava-se num carro daqueles que se dizem de gama alta e, naturalmente, usava telemóvel. Para além de tudo isto, que já não é pouco, era , nos seus já entrados quarenta anos, uma morena ainda viçosa que fazia virar a cabeça a muitos homens quando, num ar emproado de grande dama, deixava o seu retiro do Monte Novo e vinha fazer compras à cidade, ou fazia um pouco de vida social na pastelaria mais chique, frequentada pela boa sociedade. E ainda que se quedasse sozinha à mesa da pastelaria, pois que a gente de bem, por decoro e prosápia, com ela não se relacionava, publicamente desde já se diga, era vê-la com um ar de soberano desdém, sorvendo o seu chá com estudada elegância, detentora que era dos muitos segredos que as ditas boas casas escondiam e de que ela era profunda conhecedora. Algumas das damas que, com um ar senhoril, ostensivamente a ignoravam ou apenas e só lhe faziam uma muito subtil e quase imperceptível saudação, meneando levemente as pintadas cabecitas louras e batendo com suavidade as pestanas eram, foram ou seriam suas clientes.
E tanta era a freguesia que havia mandado construir, no terreiro do Monte, um aparcamento para os inúmeros automóveis que lhe demandavam a porta, em procura de remédio para os seus males, quase sempre males de amores. E alguns, com certeza muitos, vinham de paragens distantes, pois a sua fama havia chegado longe.
Nunca pôs anúncio na imprensa nem nas rádios locais. E de resto tinha, ou usaria como máscara, nunca ninguém o soube, um nome bem comezinho, nada daqueles nomes exóticos de consonâncias raras, lembrando longínquas, misteriosas e esotéricas culturas, já extintas, o que até tem mais sainete, onde estas capacidades, ao que se diz, teriam tido notável desenvolvimento, hoje presumivelmente só acessíveis a um número restrito de iniciados. Madame Margarida se chamava ela e, a não ser o uso de Madame, nada nos indicaria estarmos em presença de alguém que se dedicasse ou tivesse artes fora do alcance do comum dos mortais: recuássemos nós cinquenta anos e poder-se-ia supor que Madame Margarida seria porventura "patroa" de uma "casa de passe", pois de madames eram chamadas nesse tempo, ilação nada abonatória para a pessoa em causa. Mas onde é que tudo isso já vai!
Toda a gente sabe que as capacidades curativas, premonitórias, de adivinhação e outras, ou como ela dizia de forma sintética, capacidades extra-sensoriais, com o que muito impressionava os clientes, só são acessíveis a alguns eleitos: ou se têm ou não se têm, nascem connosco, não se aprendem, não se dão e não se vendem. Isto mesmo dizia ela, segundo me contaram.
Mas uma bruxa que se queira a par com a modernidade, que se queira aceite e, enfim, que se queira credível, não pode, desde logo, chamar-se de bruxa nem limitar-se a deitar maus olhados ou a lançar feitiços. Afinal já ninguém acredita nessas patranhas. E o mesmo se diga dos bruxos da modernidade, que até se chamam de doutores. O melhor será dar-se alguns atributos como os de astrólogo, parapsicólogo, cartomante, quiromante, tarólogo ou outros arrevesados nomes que tais. E se se possuir diploma emoldurado na parede tanto melhor. Se somos detentores de capacidades raras devemos decorá-las com algum saber académico, de outro modo não seremos mais do que autodidactas e toda a gente sabe que um autodidacta nunca é levado de todo a sério. E porque era avisada era assim mesmo que procedia Madame Margarida: tinha títulos e até tinha diploma comprovativo de que frequentara um curso de parapsicologia, no qual havia sido aprovada com elevada classificação. É óbvio que toda esta parafernália de saberes, atestados ainda por cima com diplomas, transformou a bruxa de antanho numa profissional, numa técnica, enfim.
Mas já vai longa a apresentação de Madame Margarida. E tudo isto vem a propósito de vos querer contar um caso singular que com ela ocorreu e que, desde já vos aviso, não concorre para abonar a sapiência da mesma nem a honestidade de processos utilizados. Longe de mim cometer o despautério de generalizar relativamente a tantos outros que a tais práticas se dedicam. Além de que, no caso que vos vou narrar, existe uma atenuante, uma atenuante que me parece merecer-nos alguma compreensão, pois que neste caso andou metida a mão de Eros, esse mesmo, o deus do amor. E só é de todo insensível e incapaz de compreensão aos devaneios do amor aquele que nunca amou. E quem nunca amou apenas nos poderá ser digno de lástima, por ser um ente humano truncado, incompleto, desconhecedor daquele sentimento doce e eterno que é capaz de nos elevar ao Olimpo celeste ou de nos rebaixar aos infernos profundos, e por isso é o mais humano de todos os sentimentos: sublime e torpe, grandioso e mesquinho, generoso e cruel.
Mas deixemo-nos de divagações e contemos o que se passou.
A Madame Margarida não se conhecia homem, pelo menos de há três ou quatro anos a esta parte. Quando aqui se estabeleceu, inicialmente numa pequena casa térrea, na parte antiga da cidade, numa zona de ruelas e becos, antigo bairro de mouros e judeus, trazia parceiro que, como ela, também se dedicava às artes esotéricas. Dava pelo nome de Doutor Kebir, assim mesmo, com kapa e tudo, este sim, um nome de sonoridades exóticas, a lembrar culturas distantes e saberes estranhos. Era um homem com um perfil aquilino, alto e magro, de cavanhaque e longa cabeleira, trajando sempre de negro. Era, como é bom de ver, uma personagem que cultivava um estilo misterioso e distante, de todo conveniente ao seu mister. Mas um dia as coisas parece que azedaram entre ambos, vá lá saber-se porquê, e o Doutor Kebir desapareceu, misteriosamente, da circulação. Não se sabe de onde tinha vindo nem para onde se teria ausentado este Doutor. Vidas misteriosas, já se sabe.
Quando se separaram já se haviam mudado há algum tempo para o Monte Novo, que compraram e recuperaram. É bom de ver que a compra do monte, situado nos arredores da cidade, fora ditada por razões de carácter profissional e não por mera ostentação, tão comum aos novos-ricos: o monte propiciava visitas discretas, longe dos olhares sempre incómodos e indagadores de amigos e conhecidos, pois aquilo que leva um comum mortal a fazer tais diligências é quase sempre assunto inconfessável, porque do foro mais íntimo. E eles, no louvável propósito de salvaguardarem a privacidade dos seus clientes, haviam optado pela compra do monte.
A vida tinha-lhes sorrido mas, pelos vistos, nem tudo lhes correria de feição.
As más-línguas locais bem que porfiavam em tentar encontrar homem para Madame Margarida. Podia lá ser, uma mulher ainda em tão boa idade e tão apetecível. Mas o certo é que até ao presente nem chus nem bus que apontar, para desespero de muitos que sempre se comprazem em esmiuçar a vida alheia, useiros e vezeiros que são em ver o argueiro no olho alheio e em não ver a trave no seu.
E os tempos foram correndo, calmos e prósperos para Madame Margarida, até que um dado dia lhe entra em casa uma cliente. Era mais um caso de esposa que se cuidava atraiçoada e vinha em busca de lenitivo e cura, cura para o mal do marido. Que este já não a procurava como dantes soía fazer, que por vezes chegava a casa a desoras, o que dantes não acontecia, que após longos períodos de afastamento e absoluta frieza a obsequiava com prendas surpreendentes, prova de que o remorso e o arrependimento por vezes prevaleciam sobre o seu mau proceder que, enfim, já não era o mesmo homem. Se tinha outras e mais fundadas provas de que outros amores o haviam desencaminhado dos seus deveres conjugais? Que não, que não tinha, e nem precisava, nestas coisas coração de mulher adivinha.
Qual a terapia recomendada não o sei. Nunca recorri a tais processos e aqueles que recorrem parece que têm algum pejo em desvendar aquilo que se passa entre eles e o conselheiro vidente. Também nunca o indaguei junto daqueles poucos que conheço que já foram à "bruxa". Procuro intrometer-me o menos possível na vida alheia. Mas estou em crer que muitos outros que conheço também já lá terão ido, só que sobre o assunto guardarão eles o mais profundo sigilo. Adiante.
As visitas continuaram, prova da pouca eficácia da terapia utilizada, dirá quem desconhece o fim da história.
Falta ainda esclarecer que a cliente de que falamos e o seu desencaminhado cônjuge eram, e ainda são, funcionários públicos e trabalhavam, à altura destes factos, na mesma repartição. Ele, mercê da sua actividade, fazia frequentes deslocações à capital onde por vezes se demorava dois a três dias. E era nessas ocasiões que o ciúme e a desconfiança irrompiam como lava ardente no peito da esposa. Sei, porque esta o contou, que se tinha proposto várias vezes segui-lo discretamente nessas saídas, mas que Madame Margarida sempre a dissuadiu de fazê-lo dizendo-lhe que seriam infrutíferas tais diligências, convencendo-a da quase impossibilidade de seguir alguém na grande cidade por muito tempo sem lhe perder o rasto, ainda mais quando se conhece mal essa mesma cidade, como era o seu caso.
E num determinado dia os acontecimentos precipitaram-se de forma irremediável. E por um conjunto de circunstâncias fortuitas, aquelas circunstâncias que, há falta de melhor, uns atribuem ao acaso, outros ao fado, outros à providência divina e que os antigos, tentando pôr um pouco de razão e ordem nas desordens do mundo, atribuíam aos caprichos dos deuses. Não me parece que tenhamos avançado, neste sentido, muito mais do que eles. Aconteceu que o marido se havia ausentado para a capital, em serviço, e por lá se iria demorar dois dias. Quando ela, ao segundo dia de ausência deste, comparece pela manhã no local de trabalho uma colega, intrigada, pergunta-lhe:
-Então, já regressaste de Lisboa?
-Se já regressei de Lisboa?
-Sim, é que o meu marido telefonou ontem à noite para o teu, creio que para combinarem uma caçada no próximo fim de semana, e do hotel responderam que ele tinha acabado de sair com a esposa.
Imaginem a comoção. Mas não se desmanchou. Conteve-se e respondeu-lhe que sim, havia acabado de chegar, que agora com a auto-estrada a viagem se fazia com mais rapidez e até com mais conforto e segurança.
Terá passado todo esse dia numa angústia profunda. Ele deveria regressar nessa noite. Segundo confessou mais tarde, dias depois, quando já havia serenado, desejou, desejou profundamente, que algo de mau lhe acontecesse, porque aquele desassossego íntimo em que a havia deixado era merecedor de alguma penosa contrapartida na pessoa dele.
Cerca das dez horas da noite encontrava-se em casa fervendo em amarga revolta, preparada para uma homérica disputa conjugal, quando recebe uma chamada telefónica das autoridades comunicando-lhe que o marido havia sofrido um acidente, já depois de ter deixado a auto-estrada. Supunha-se que o acidente havia sido causado pelo piso bastante molhado, devido às grandes chuvadas que haviam caído ao longo do dia e que aqui e ali formavam grandes poças. O estado do acidentado não inspirava cuidados. O acidente, embora aparatoso, não tivera consequências de maior: o carro havia saído da estrada e fora imobilizar-se a cerca de cinquenta metros da via, numa zona de cultivo, livre de obstáculos. O próprio solo, empapado pela água, teria amortecido o impacto. Que já havia seguido de ambulância para o hospital distrital.
Para lá se dirigiu aguardando ali a sua chegada. Sentia-se agora um tanto ou quanto culpada por tão intensamente haver desejado, ao longo do dia, que algo de mau lhe acontecesse. Mas do mal o menos, pela descrição das autoridades,apenas não ganhara para o susto. Oxalá assim fosse.
Quando a ambulância chegou olhou-o friamente. Poude confirmar que o estado dele, aparentemente, não inspirava grandes cuidados. Estava consciente e para além de algumas equimoses na cara e dores no peito, devido à pressão exercida pelo cinto de segurança, de nada mais se queixava. Iria ficar internado para observação e muito provavelmente teria alta no dia seguinte. Isto lhe dizia um dos bombeiros que o tinham transportado, para a confortar, quando chega uma outra ambulância. "Outro acidente?", perguntou-lhe ela. Que não, que era o mesmo acidente, a viatura trazia dois ocupantes.
Com o coração em sobressalto foi ver quem era o outro ocupante. Era Madame Margarida.
Olhou-a longamente, sem dizer palavra. A outra, que estava bem desperta, ao pressentir a sua presença fechou os olhos e adoptou uma pose de completo desfalecimento. Não lhe apeteciam cenas públicas com a esposa ofendida, tinha a sua reputação de mulher e de profissional a defender e ainda por cima, e isto era talvez o mais importante, jazia numa maca, toda dorida e incapaz de se defender.
Depois de muito a olhar voltou-lhe por fim as costas com desdenhosa altivez. Em seguida meteu-se no carro mas não se dirigiu para casa, tomou a direcção do Monte Novo.
No outro dia, pela manhã, os eventuais passantes e os clientes de Madame Margarida, desconhecedores do acidente e do seu internamento no hospital, intrigavam-se com o aspecto do Monte Novo: alguém havia quebrado, à pedrada, todos os vidros das janelas.





Madame Margarida já não reside na cidade. Mudou-se para o Algarve e, pelo que dizem, continua próspera. Aprendeu línguas e tem agora uma clientela cosmopolita.
O casal desavindo rompeu definitivamente. Ele pediu transferência e trabalha agora numa vila vizinha. Dizem que continua a encontrar-se ocasionalmente com Madame Margarida.

 
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