domingo, novembro 26, 2006
  Açordas

Hoje vou falar-vos de açordas.
Quando, em meados de Setembro, o Verão cede lugar ao tempo outonal, com os dias minguando e as garridas cores estivais desmaiam em tons de pastel e sépia, quando a paisagem lembra uma gravura já velha que o tempo desbotou e as primeiras aragens frescas anunciam as primeiras águas, eis que é chegado o tempo das açordas.
E porque é assim? Porque é quando elas apetecem. Porque é um prato dos tempos frios tanto quanto o gaspacho o é dos tempos quentes. A cozinha tradicional tem destas coisas, tem vagares e tem tempos.
Se elegéssemos o mais típico prato alentejano eu nem pensaria duas vezes; elegia decerto a açorda. Ela tem tudo aquilo que a identifica com a província: tem o pão, tem o azeite, tem as ervas aromáticas, o coentro e o poejo, tem a simplicidade e a rusticidade próprias do indígena e tem uma tão perfeita conjugação de sabores que só uma sapiência culinária caldeada por séculos de experimentações poderia encontrar; tem pois a genialidade dos nossos cantares e da nossa arquitectura populares, o saber e a cultura depurados por gerações que muito viram e muito ouviram. Mas ela é também, na sua humildade, símbolo de uma pobreza ancestral e lição prática de como a necessidade sempre aguça o engenho: com tão parcos meios fazer um prato tão oloroso e sápido é obra.
Hoje fazêmo-la mais rica, embora os tempos em que comê-la de ovos já era um pau por um olho não vão assim tão distantes. E alguns decerto que a continuarão a comer na sua mais extrema e pobre simplicidade, pois que o progresso que lentamente nos foi bafejando, não o de agora que se afigura incerto, tarda em bafejar todos com maior equidade. Mas fazêmo-la mais rica, com bacalhau, com pescada, até há quem lhe junte amêijoas e até camarão, mas confesso que esta última variante não me agrada de todo.
Muitas vezes, em tempos de juventude, as comi de ovo, não como refeição principal mas para confortar o estômago, noite adiante, depois de alguma estúrdia, para desenratar, dizíamos nós.
Devíamos internacionalizar a nossa açorda. Se os italianos internacionalizaram a piza, os alemães o hambúrguer, os espanhóis a paella e tantos mais exemplos poderíamos dar, pois nós deveríamos internacionalizar a açorda. Provavelmente perderia a sua genuína referência à terra alentejana, como a piza a perdeu relativamente a Nápoles, o hambúrguer a Hamburgo ou a paella a Valência. A açorda perderia assim cunho regional e ganharia foros de nacionalidade. Mas nós somos generosos. Até porque, creio, iria acabar num qualquer sucedâneo mais ou menos adaptado ao paladar internacional cuja característica mais saliente é não ter paladar nenhum. E quem quisesse comer a genuína, a autêntica, a única, teria que vir até nós.
Conta-se que em tempos da outra senhora, algures no Alentejo, um grupo de dignitários do regime se encontrava em grande almoçarada com os notáveis locais. Depois de bem bebidos e bem comidos alguém lembrou que ali próximo estaria um trabalhador rural com fama de poeta repentista: pois que se chamasse o homem para aquilatar do seu engenho e arte, tanto mais notáveis quanto era analfabeto. Chamado à presença de tão distinta assembleia saiu-se com esta:
Anda toda esta canalha
De banquete p'ra banquete,
E quem produz e quem trabalha
Come açordas sem azeite.
Escusado será dizer que o sarau de poesia acabou logo ali.
 
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