domingo, dezembro 03, 2006
  Recordações

O meu avô paterno, nascido no último quartel do século XIX e tendo cumprido o serviço militar ainda em tempos de Monarquia, foi contudo educado dentro dos mais estritos preceitos republicanos, políticos e éticos. Homem do seu tempo não logrou escapar ao anti-clericalismo que enformava a propaganda republicana, anti-clericalismo que transparecia em algumas das histórias que me contava e que eu escutava com tanto encanto e delícia. Dessas histórias recordo uma, de sabor popular e colorida com vocábulos de sonoridades raras e extravagantes, de que particularmente gostava.
Vou contar-vo-la:
Um pobre rapaz, órfão e sem amparo, procurou trabalho junto do padre- cura da vila que o aceitou e logo o industriou nos seus afazeres e no novo vocabulário que deveria passar a usar portas adentro. E assim perguntou-lhe:
-Que trago eu calçado?
-As botas, senhor padre-cura!
-Não, idiota, são os bonifrates.
-E que tenho nos pés? (o padre-cura calçava meias vermelhas, como era então de tom os padres calçarem.)
-São as meias!
-Não palerma, são as titrenitas. E como se chama a senhora que comigo vive? (a alusão ao estado de mancebia em que viviam à época muitos membros do clero haveria de estar presente.)
-Chama-se Aldegundes, padre-cura.
-Não, campaniço, chama-se Liquitates. (campaniço era para o meu avô palavra singularmente ofensiva pois que nado e criado na vila.) E quem sou eu?
-É o senhor padre-cura.
- Não, paspalhão, sou o papa-cristos. E como se chama esse animal? - perguntou, apontando o gato.
-É um gato.
-Não, imbecil, é o papa-ratos. E como se chama isto que eu tenho na mão?
-É uma vara.
-Não, grande parvo, é a ciência. E como se chama aquilo?
O padre vivia em casa ampla, com uma grande chaminé onde dependurados estavam dezenas e dezenas de lustrosos chouriços e linguiças que, gulosos, fitavam o rapaz a quem uma fome cruel e eterna atormentava, sempre de barriga a dar horas.
-São chouriços e linguiças.
-Não, grande estúpido, são os padres-eternos e as almas-santas.
Depois de assim industriado lá começou a trabalhar para o senhor padre-cura. Mas o passadio era mau e os maus tratos eram muitos e quando chegou o Inverno deram-lhe só uma saca com que se tapar. E mesmo dormindo junto ao borralho o frio era tanto que o não deixava pregar olho.
-Padre-cura, tenho frio! - bradava-lhe o rapaz.
-Onde tens a saca?
-Tenho-a em baixo.
-Pois põe-na em cima.
-Padre-cura, tenho frio! - de novo lhe gritava.
-Onde tens a saca?
-Tenho-a em cima.
-Pois põe-na debaixo.
Farto daquele viver o rapaz, uma dada noite, encheu a saca de linguiças, pregou uma varada no rabo do anafado gato, que abalou soltando miados que era mesmo um dó de alma, e gritou para o padre-cura:
-Levanta-te, ó papa-cristos, dos braços da Liquitates, e vai acudir ao papa-ratos que leva a ciência no rabo, e fica-te com os padres-eternos que eu cá levo as almas-santas.
E abalou para nunca mais voltar.
Em tempos de escola primária, como então se dizia, era obrigado a assistir à missa dominical a que se seguia, depois do almoço, a catequese, sob pena de ficar sem recreio toda a semana. Ao anti-clericalismo da Primeira República, e que tão nefasto lhe foi, seguia-se o ensino religioso e doutrinário do Estado Novo. Acabei assim beneficiário de duas influências. O intenso debate que desde o século XVIII, o século das Luzes, afrontou o sagrado e o profano, o laicismo e a religiosidade, permite-nos hoje um olhar sereno e desapaixonado perantes tais realidades, com guerras e ódios à mistura ultrapassámos a dicotomia. Será este o grande debate civilizacional que o mundo muçulmano algum dia terá que fazer.
 
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