sexta-feira, abril 29, 2005
  UM LAR POR EMPRÉSTIMO

Veio à porta, com a mão espalmada sobre os olhos semicerrados, encandeado pela luminosidade excessiva que se derramava de um céu azul pálido, desmaiado, como se o calor, que tanto era, o tivesse chamuscado. Era uma tarde de Agosto.
Vivia agora num permanente sobressalto. Os montes eram assaltados por quadrilhas de larápios vindos não se sabe de onde e que logo desapareciam, levados pelas artes do diabo. Por toda a freguesia não se falava de outra coisa. Poucos dias havia que na freguesia vizinha tinham roubado um casal seu conhecido e até, ao que se dizia, tinham abusado da velhota. O receio difuso, alimentado quase diariamente pelas conversas ouvidas no Café, centro do mundo duas léguas em redor, tinha-se agora transformado em medo. Os gatunos tinham até então feito as suas patifarias longe, e o seu receio seria como o da caça que ouve lá longe, vagamente, o espingardear dos caçadores e que precatada dorme, com um olho aberto e a orelha fita, sentindo-se ainda segura no aconchego do pasto dissimulador ou na lura aberta em pé de azinheira carcomida pelos anos. Mas agora tinham-se chegado demasiado perto. Sentia-se jogador de uma lotaria para a qual não tinha comprado cautela. Agora também a ele lhe poderia calhar a sorte. O medo havia-se apegado às pessoas como o calor do Verão.
Tranquilizou-se. Era o jipe da Guarda.
A mulher veio à soleira perguntando quem era, que era a Guarda, que descansasse. Também ela, e ainda mais ela, vivia em sobressalto. Nem as poucas horas que dantes dormia, que os anos nos vão tirando as horas de sono, agora lhe aproveitavam. Até o ruído mais familiar a acordava e a punha em cuidados por longo tempo, sem pregar olho.
-Bons dias! Bons dias! Que não abrissem a porta a desconhecidos, fosse lá por que razão fosse, já que não tinham telefone que comprassem um telemóvel, que era coisa útil e que até já nem custava muito dinheiro, que até os filhos lho poderiam comprar, que estavam empregados e que se o senhor Aníbal dissesse para o que era decerto que não iriam dizer que não. E por que toma e por que deixa...
Mas o semblante taciturno, sombrio, dos guardas não tranquilizava ninguém. Atenazada pelos superiores, apoucada pelo povo, pois aquilo durava havia meses sem que lhe conseguisse pôr termo, a autoridade sentia-se incomodada e posta em causa.
E lá seguiram o seu caminho.


II

O Café do Vitorino encontrava-se mais animado do que era habitual. A televisão tinha falado noutro assalto lá mais para baixo, quase na serra algarvia. Tinham espancado os velhotes, tinham-lhes roubado as poucas economias e deixado amarrados por largas horas, enquanto não foram descobertos por um vizinho.
Havia no ar uma exaltação e um nervosismo contagiantes. Tinha ido ao Café beber um copito e desenferrujar a língua e logo lhe contaram aquela.
Mas ali encontravam-se mais seguros. Sempre eram umas quantas habitações de um lado e outro da estrada. Até agora os ladrões tinham roubado gente isolada nos montes e sempre casais idosos, que novos também já por lá não os havia. Nunca tinham roubado em aldeias, por mais pequenas que fossem. Quando o faziam faziam-no pela certa, sabiam ao que iam. Roubavam gente como ele e a sua Mariana, sós, desamparados, velhos e trôpegos, incapazes de se defenderem. Há muito que se deveriam ter mudado para a aldeia, quando o último dos filhos abalou deviam-no ter feito. Ela bem havia insistido. Mas ele, teimoso, preso a umas parcas courelas que desde moço trabalhara ainda em companhia de seu pai, fora ficando. Agora já nem força tinha para trabalhá-las. Deveria ter vendido tudo em bom tempo e mudado para o povoado. Mas aquele malvado apego à terra tinha podido mais. Vendê-la era vender-se, quando em tal pensava punha-se-lhe um peso e uma escuridão na alma que só ele sabia. Agora era aguentar-se até que a morte o viesse buscar.
A conversa ia animada no Café. Um gravatinha, bancário na vila próxima e que, como filho da aldeia, ali passava os fins de semana, dizia, toda farroncas, que a ele não o haveriam de pilhar. Olha que se fosse com ele, havia de ser bonito, que lhes metia um tiro no bucho, que fazia e acontecia. O Vitorino olhava-o de soslaio. Não morria de amores por aquele desde que por causa de uma sua gracinha se tinha visto em apuros com a inspecção das actividades económicas, que esses também só apoquentam os pequeninos. Tinha aparecido no Café com uma garrafa de vinho de rótulo todo catita e por força que o Vitorino havia de enchê-la e servir com ela as taças. Em má hora o Vitorino acedeu. Logo chegam os fiscais e embirram com a garrafa que era de um vinho caríssimo. Então servia vinho aos fregueses em vasilhame que não era o próprio? E por pouco não o encoimavam, não fora as explicações prestadas e o apoio de todos os fregueses, que o gravatinha na altura pisgou-se. Mas lá parlapatão era ele. E não é que daí em diante alguns farsantes entravam no Café e lhe pediam vinho da tal marca, no meio de grande chacota? Vitorino não era homem para motetes e um belo dia em que acordou mais assomadiço, resolveu não abrir o Café. Por três longos dias aquelas portas se mantiveram encerradas. O Vitorino está doente! O Vitorino ausentou-se! Que nada, estava amuado. E os fregueses, que andavam como pássaros a quem houvessem destruído o ninho, fizeram romagens a sua casa: que não ligasse, aquilo eram coisas de moços, que ele perdia o seu negócio e eles o convívio... E ao quarto dia Vitorino reabriu o Café, que sempre era preferível aturar os fregueses do que a mulher, que nesse intermédio o havia infernizado. E quando, nessa manhã, as portas se abriram, foram tantas e tais as manifestações de agrado da clientela desarvorada que Vitorino se comoveu.
Era tempo de regressar a casa. Sempre era meia légua que ele, Aníbal do Monte Lobo, ainda era capaz de fazer em meia-hora. Mas cada vez lhe ia custando mais. De repente estugou o passo, ao lembrar-se que a mulher há horas que estava para lá sozinha.


III

A mulher olhava-o com um ar repreensivo.
Aníbal estava sentado com a velha escopeta sobre os joelhos. Tinha-a acabado de carregar. Comprara naquela manhã cartuchos, coisa que já há muito tempo não havia naquela casa, desde que as pernas se recusaram a marchar por veredas e córregos em busca de caçapos e perdizes.
Aquilo não era viver, dizia-lhe. Estavam para ali como animais acossados. Se viessem para roubá-los pois que viessem, que o roubo havia de ser coisa de pouca monta. Mas sangue derramado em sua casa, gente ferida ou morta em sua casa, só eles. Como iam viver depois com isso? Que maluqueira se lhe havia metido na cabeça? Que haviam de ir para um lar. O compadre Damásio, que estava na Junta de Freguesia, era homem com muitos conhecimentos e haveria de meter um empenho. E que ou ele ia falar com o compadre ou ia ela.
Aníbal, sentado na rua do monte, olhava os longes.


IV

O dia chegou.
O táxi esperava-os. Já tinham carregado os poucos tarambecos que haviam de levar consigo. A maior parte, que pouco préstimo tinham, haviam-nos distribuído pelos vizinhos.
O motorista esperava-os, impaciente. Aníbal demorava-se, olhando uma última vez os campos em redor, como se os afagasse com os olhos.
Entraram por fim no carro e sentaram-se, sem trocar palavra. Ele, num gesto tão pouco comum, pousou a sua mão sobre a dela. Se algum deles chorou nunca o souberam. Não se olharam nem tampouco olharam para trás.



 
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